Último encontro: a psicanalista Gisleide Almeida recorda o poeta Gilberto Mendonça Teles
- Revista Sphera
- 29 de dez. de 2024
- 5 min de leitura

Um bom encontro
GISLEIDE ALMEIDA
Em sua Ética, Spinoza classifica como “bom encontro” aquele cuja relação propicia o afeto de alegria, estimulando nossa potência de existir e nossa capacidade de afetar e sermos afetados. É com esse fundamento que tomo como bom o encontro em que tive a honra de conhecer, pessoalmente, um dos mais luzidios e eminentes poetas brasileiros, Gilberto Mendonça Teles. Tal circunstância se deu pela via de um intermediário-arquipélago, o também poeta – e grande – Anelito de Oliveira.
Foi em 03 de outubro de 2024. Pela manhã, uma mensagem do Anelito me colocava a par de sua agenda: um encontro marcado com o poeta goiano e a professora norte-mineira especialista na obra do Gilberto, Rosemary Ferreira de Souza. Eu não os conhecia. A reunião aconteceria no restaurante do Hotel Normandy. A mensagem incluía ainda um convite para estar com eles, quiçá no almoço, ensejo para que pudéssemos ser mutuamente apresentados.
Para minha sorte, eu me achava em Belo Horizonte. Naquela semana eu viajaria para o Recife, onde participaria na modalidade presencial do Congresso da Anpof – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia. Eu estava munida de duas comunicações: uma presencial, sobre um diálogo entre a teoria do filósofo francês Henry Bergson e a psicanálise, e outra online, em que me dispus abordar as perspectivas decoloniais de Édouard Glissant e Frantz Fanon para pensar o desvio existencial dos negros.
Esse “desvio existencial” é uma expressão criada por Fanon para designar o destino imposto pelo colonizador ao africano escravizado e seus descendentes. Participei do congresso apenas na modalidade online e, tão logo concluí a minha apresentação, fui juntar-me a eles.
Daquele almoço que se estendeu um pouco mais no tempo, resultou uma bela e memorável tarde, cuja pincelagem âmbar – por efeito dos raios indefiníveis do sol – antecipava a nostalgia da lembrança. Todos sabíamos da grandeza daquele momento, que experienciamos como único, mas não imaginávamos que seria também o último.
Gilberto se mostrava disposto e era uma presença afetada de alegria, que igualmente nos alegrava. Entregamo-nos à “Lira goiana” e a vários outros poemas gilbertianos, cujos versos matizavam nossos sorrisos. “No culto da alegria contagiante”, eu muito me identifiquei com o poeta das Belas Vistas goianas. Essa alegria que insiste, que resiste e que persiste em aceno estoico não desconhece as desventuras “dos dias impossíveis”. Não é sem razão, como nos afirma ele, que os olhos precisam inventar o azul dos horizontes.
Gilberto Mendonça Teles é um autor que, no encalço das centelhas fugidias de seu ideal, erigiu com engenhosidade seu estilo de forma inventiva e opaca. Sobejamente conhecido como o poeta da linguagem, é por entre as veredas da língua que ele se apropria das palavras e, diante delas, se posiciona e as posiciona a seu modo, fazendo looping, dimple e tudo o mais para não ser o poeta do tempo dos outros.
Leitor ávido de Drummond, encontra no meio do caminho palavras-pomes que desgastam o seu silêncio e escrutinam o seu deserto, deixando como rastros acordes extraordinariamente ma-vi-o-sos: uma consonância de seus gestos e expressões soprados no “absoluto” de sua “canção e voz”. É o seu laurel, brindando os seus méritos.
Assim, foi um corte surdo no peito receber a triste notícia da partida do poeta dois meses e dois dias depois do nosso encontro. Sorumbáticos e desamparados, ficamos órfãos. Todavia, cumpriu-se o que as suas estrofes-esfinges anunciavam como claro enigma: o poeta apanhou mesmo os seus óculos e foi tomar posse de suas sombras, em lugar onde pudesse ser ausente e devoluto.
Ora, ausente eu não diria, pois a potência do existir spinoziano é o lastro que nos assegura que o poeta continuará a existir “enquanto um pássaro houver que cante e sonhe na viagem”, os seus versos. As melodias gilbertianas desenham um poeta metamorfoseado em planeta-alma opaco, que agora acompanha o sol, numa investidura movente que desponta e declina. Um planeta cuja explosão de halos-versos não nos deixa duvidar que a vida é um contínuo fluir.
Diante desta perspectiva, resta-me agradecer à vida pelo fluir dos instantes profícuos e benfazejos daquele bom encontro com Anelito e meus recém-cativados amigos, Gilberto e Rosemary. Encontro que alimentou-nos a todos com alegria.
Gilberto e Rosemary deixaram os registros de suas impressões nas dedicatórias dos livros com que me presentearam e que aqui compartilho. A dedicatória de Gilberto foi escrita em seu volume que compõe a coleção Infame Ruído, O contínuo fluir, da Inmensa Editorial. A anotação de Rosemary se encontra em sua consistente e esmerada obra, Poesia e Crítica: trilogia poética de Gilberto Mendonça Teles, da Kelps Editora, publicada a partir da sua pesquisa de Mestrado. Vejamos:
"À Dra Gisleide Almeida,
com os agradecimentos dos deuses por este encontro em BH, o que me toca neste livro, organizado por Rosemary, a minha musa mineira, na presença do editor Anelito de Oliveira.
O abraço e a admiração do
Gilberto M. Teles
BH, 3.10.24"
"Para Gisleide Almeida
com a alegria deste encontro que brinda poesia, crítica e o contato de grandes amizades.
O abraço da Rosemary Ferreira de Souza.
BH, 03 de outubro de 2024"

Para finalizar, reporto-me ao poema “Lira goiana”, que li em nosso almoço a pedido de seu autor, a quem hoje homenageamos e agradecemos pela generosidade em nos deixar tão bela e vasta obra, que indiferencia-se de sua vida. Em especial, agradeço-lhe os versos que juntos lemos, e os sorrisos acordados em nossas faces. O poema:
Repartam meu corpo pelos rios de Goiás:
a mão esquerda acariciando as águas do Araguaia,
a direita desenhando os rumos do Paranaíba,
os pés brincando nas águas do Aporé e do Verdão,
a cabeça na junção do Araguaia e Tocantins
(quero governar daí as artimanhas e latifúndios),
os joelhos no Rio dos Bois e no Caiapó,
o sexo bem enterrado na lama do Meia-Ponte.
Mas deixem minha alma no Rio das Almas,
deixem meu coração batendo no Rio Turvo,
deixem minha língua nas areias do Corumbá
e meus olhos secando nalguma lagoa
para a alegria dos bagres, dos lobós
e das piranhas traidoras.
Ah! deixem também meu cachimbo fumegando
nos borrifos de luz da Cachoeira Dourada:
quero ser como um instante de arco-íris
nos olhos das mulheres de Goiás.
NOTA: Meia-Ponte “é um rio que banha Goiânia”, conforme o poeta informou durante a minha leitura em voz alta.
Gisleide Almeida é psicanalista e Mestre em Filosofia pela FAJE (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia) com trabalho de pesquisa sobre o poeta, romancista e ensaísta martinicano Édouard Glissant.
Se a alma é bela
o corpo espelha
a áurea espalhar!