De volta para casa
Elio Ferreira
episódio I - poema flagrante
1
estou de volta
estou de volta para casa
como se tivesse a volta para os becos e quintais
estou de volta
de volta para casa
e deus é um menino preto de carapinha
q colhe ervas cidreiras
e brinca com os meninos numa luta corpo-a-corpo
e se enlameiam correndo atrás do besouro “cavalo-do-cão”
estou de volta:
as paredes da casa impregnadas de nosso cheiro
e a gente a se amar a partir de palavrões:
amor na lua cheia - canções
e o poema sem utilidade nenhuma para girassóis:
a tarde inicia as taiobas (coisas de monturo)
a tarde meninos a cobiçarem o arco-íris
a tarde um menino: mamãe arranca aquele
arco-íris pra mim!
estou de volta
um grilo griligrirrigrilama anoitece os homens
vive para o ferro sua dimensão de grilo:
um grilo na noite 100% grilo
um grilo na noite não sei quantos % esmeril
enche a noite o canto grilo:
engridente encravado na medula
2
o canto
(pedra ou metal)
flagra repiques a martelos
a outras falas
e a mim mesmo
o canto
o galo madrugada endoidou
comeu a flor da bigorna
comeu a estrela d’alva
comeu o chiqueiro: o bodejar amanhecendo
os quintais mistura a gritaria a casa toda:
a menina quase morta
quando acaba a essa hora da noite:
“e Zé P... não tinha nem vergonha
de se banhar no olho-d’água do Escurador”
- água boa pra se beber e outras serventias
agora toda empestada
- e a gente correndo da lepra:
escorrega a dor o coradouro
a Mesa-de-pedra
a roupa quarando no lajeiro
e a dor da fome não tinha cura:
vivia sol-a-pino
3
(a fala de dona Neném da Vereda Grande)
do amanhecer ao por do sol
a molecada gritando: Neném doida – “todo o transporte endoidou
derrubou – oh! não me mate na minha casa
- não me mate na minha casa”!
frechou numas cajás das cajás q frechou o galo
não sei q horas da madrugada – “e eu não tinha
nem água pra beber 1983 – me escondi:
o cercado todo ganhou!
todo ganhou”!
foi no comecinho de agosto e eu disse minha alma
do pai Joaquim – valei-me!
e o fogo ia tomando conta: lá estava
pior do q aquele lugar – rezo
todo o santo dia – q se chama o inferno
- minha cabeça onde bebi
água no asilo de suspensão às 3h da madrugada – oh
lugar pequeno pra caber gente: são cinco psiquiatras
é uma cabarezada na jardineira
o resto do inferno – a seca toda descansou
em abril
– e tem mais de não sei quantos mil homens
e a fome chega é assim ãããããããg nhang tem-tem-tem – ôi!
quem foi dona Neném?
a fome acompanha este defunto-sem-choro – não tenho
caderneta de nenhum coronel
menino – o jeito desses homens: “tira a
roupa – porra! tira a roupa – escrota! eu estou
te matando! eu estou te comendo”! – e eu não sabia
pra onde dava e eu não sabia de q jeito estava
e a malhada estava cruzada pelo diabo – entrou
sexta-feira – não posso gastar palavras:
minha sina - dizem
é morrer de uma febrezinha
4
Seu Né Preto – espere por mim
com banhos de alecrim
com histórias de Trancoso
com cantigas de passarinho
com 7 gerações bumba meu boi no terreiro:
não era gente debaixo não
– era boi mesmo:
cheio de artimanhas.
seu Né Preto:
me ensine a fazer uma gaiola
um papagaio de papel e o caminho daquela serra
onde se caçava alecrim
seu Né Preto – pouco se espera dos quintais:
senão a morte das fibras
a antropofagia das lombrigas
e o cocoricoooo do galo de Calcutá abanando a tarde
anoitece o nosso caralho
espantalhos na rua do Ouro
o ouro arrancado na mesa-de-pedra:
o “Escurador” não cura
nem lava a dor a roupa lavada
resvala a vida no lajeiro
5
por si mesmo o galo
e a sina de ser galo
(faz a vez do cavalo e do vaqueiro)
insulta outro galo
fere o espaço a goela
como o ferreiro fere o aço
a fogo
a talhadeira
a marreta
a martelo
mira o girassol o galo desafia o
girassol gira para o sol o galo
cisca a tarde o galo
defensor do quintal o galo
(entre fedegosos e ervas-cidreiras)
apunhala o inimigo outro galo
na marginalidade do monturo.
não o chamaria espadachim
não o chamaria cavaleiro medieval
não o chamaria gladiador
(à espera do toque de clarim)
chamo-o cangaceiro armado a punhal
afia a lâmina no lajeiro
o galo
empina a musculatura
o galo
canto de entardecer
o galo
desafio para outros quintais
estou de volta
como se tivesse a volta para os becos e quintais
e deus é um menino preto de carapinha.
Floriano, Piauí, 1985
(Inédito)
Oficina de ferreiro de Vitorino Ferreira. Floriano, Piauí.