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Um poema em cinco cantos de Elio Ferreira

Atualizado: 10 de nov. de 2021

De volta para casa


Elio Ferreira


episódio I - poema flagrante

1


estou de volta

estou de volta para casa

como se tivesse a volta para os becos e quintais


estou de volta

de volta para casa

e deus é um menino preto de carapinha

q colhe ervas cidreiras

e brinca com os meninos numa luta corpo-a-corpo

e se enlameiam correndo atrás do besouro “cavalo-do-cão”


estou de volta:

as paredes da casa impregnadas de nosso cheiro

e a gente a se amar a partir de palavrões:

amor na lua cheia - canções

e o poema sem utilidade nenhuma para girassóis:

a tarde inicia as taiobas (coisas de monturo)

a tarde meninos a cobiçarem o arco-íris

a tarde um menino: mamãe arranca aquele

arco-íris pra mim!


estou de volta

um grilo griligrirrigrilama anoitece os homens

vive para o ferro sua dimensão de grilo:

um grilo na noite 100% grilo

um grilo na noite não sei quantos % esmeril

enche a noite o canto grilo:

engridente encravado na medula




2


o canto

(pedra ou metal)

flagra repiques a martelos

a outras falas

e a mim mesmo


o canto

o galo madrugada endoidou

comeu a flor da bigorna

comeu a estrela d’alva

comeu o chiqueiro: o bodejar amanhecendo

os quintais mistura a gritaria a casa toda:

a menina quase morta

quando acaba a essa hora da noite:

“e Zé P... não tinha nem vergonha

de se banhar no olho-d’água do Escurador”

- água boa pra se beber e outras serventias

agora toda empestada

- e a gente correndo da lepra:

escorrega a dor o coradouro

a Mesa-de-pedra

a roupa quarando no lajeiro

e a dor da fome não tinha cura:

vivia sol-a-pino




3

(a fala de dona Neném da Vereda Grande)


do amanhecer ao por do sol

a molecada gritando: Neném doida – “todo o transporte endoidou

derrubou – oh! não me mate na minha casa

- não me mate na minha casa”!

frechou numas cajás das cajás q frechou o galo

não sei q horas da madrugada – “e eu não tinha

nem água pra beber 1983 – me escondi:


o cercado todo ganhou!

todo ganhou”!

foi no comecinho de agosto e eu disse minha alma

do pai Joaquim – valei-me!

e o fogo ia tomando conta: lá estava

pior do q aquele lugar – rezo

todo o santo dia – q se chama o inferno

- minha cabeça onde bebi

água no asilo de suspensão às 3h da madrugada – oh

lugar pequeno pra caber gente: são cinco psiquiatras

é uma cabarezada na jardineira

o resto do inferno – a seca toda descansou

em abril

– e tem mais de não sei quantos mil homens

e a fome chega é assim ãããããããg nhang tem-tem-tem – ôi!

quem foi dona Neném?

a fome acompanha este defunto-sem-choro – não tenho

caderneta de nenhum coronel

menino – o jeito desses homens: “tira a

roupa – porra! tira a roupa – escrota! eu estou

te matando! eu estou te comendo”! – e eu não sabia

pra onde dava e eu não sabia de q jeito estava

e a malhada estava cruzada pelo diabo – entrou

sexta-feira – não posso gastar palavras:

minha sina - dizem

é morrer de uma febrezinha




4


Seu Né Preto – espere por mim

com banhos de alecrim

com histórias de Trancoso

com cantigas de passarinho

com 7 gerações bumba meu boi no terreiro:

não era gente debaixo não

– era boi mesmo:

cheio de artimanhas.

seu Né Preto:

me ensine a fazer uma gaiola

um papagaio de papel e o caminho daquela serra

onde se caçava alecrim


seu Né Preto – pouco se espera dos quintais:

senão a morte das fibras

a antropofagia das lombrigas

e o cocoricoooo do galo de Calcutá abanando a tarde

anoitece o nosso caralho

espantalhos na rua do Ouro

o ouro arrancado na mesa-de-pedra:

o “Escurador” não cura

nem lava a dor a roupa lavada

resvala a vida no lajeiro




5


por si mesmo o galo

e a sina de ser galo

(faz a vez do cavalo e do vaqueiro)

insulta outro galo

fere o espaço a goela

como o ferreiro fere o aço

a fogo

a talhadeira

a marreta

a martelo

mira o girassol o galo desafia o

girassol gira para o sol o galo

cisca a tarde o galo

defensor do quintal o galo

(entre fedegosos e ervas-cidreiras)

apunhala o inimigo outro galo

na marginalidade do monturo.


não o chamaria espadachim

não o chamaria cavaleiro medieval

não o chamaria gladiador

(à espera do toque de clarim)

chamo-o cangaceiro armado a punhal

afia a lâmina no lajeiro

o galo

empina a musculatura

o galo

canto de entardecer

o galo

desafio para outros quintais


estou de volta

como se tivesse a volta para os becos e quintais

e deus é um menino preto de carapinha.



Floriano, Piauí, 1985

(Inédito)



Oficina de ferreiro de Vitorino Ferreira. Floriano, Piauí.

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