GLÓRIA SOFIA / ARQUIVO DA AUTORA
Sou do tempo
Sou do tempo do não saber
Sou do tempo de nascer maduro
Sou do tempo da candura nos olhos
Sou do tempo em que as chuvas
Das palavras eram nuvens suspensas
Nas almas do universo
Sou do tempo em que os meus risos
Formavam montanhas de poemas
Sou do tempo de nada saber
Do mundo sentir e nunca sonhar
Sou do tempo em que as mãos sorriam
Às meiguices do toque.
Eu sou daquele tempo!
(Dedicado à Vovó Antónia)
Quero ferro
Afundo nas lágrimas da alma
Nos lábios dos espíritos
A dor pinga no corpo
No sorriso quero os beijos
Mas no coração quero ferro
Quando os relâmpagos
Acordam a memória
Formam no estômago
Uma colmeia
Ruídos de abelhas
Desesperados pelo néctar
A fogueira da lembrança
Queima o amor
A vida não desenha o vento
Nesta história que não é
Para entender, mas para
Esquecer.
Uma mão cheia do mar
Caiu-me do peito
E ainda quero ferro
Quero grito das lagoas
Quero voz de sangue
Quero musgo na pele
Quero os gostos insuportáveis
Quero ferro
No fim do último suspiro
de nada querer
Da melgueira saborosa
Jorra o doce mel
Dos favos.
Desabafo da mudança
Gostamos muito de eternidade
De viver para sempre
Do amor ser infinito
Da riqueza que não esgota
Temos medo de crises
Emocionais e financeiras
Gostamos do rio que não seca
Do mar calmo
Do vento que não leva
Não gostamos de esquecer
e às vezes não queremos que
Tudo passe, nem mesmo algo
Que incomoda-nos
Nunca vi ninguém
Que gostasse de andar na chuva
Os que gostam são tatuados de loucos
Mas a verdade é que tudo tem um fim
Para possuir a verdadeira
Existência do começo.
Até os climas chuvosos acalmam
Paixões em chamas apagam
E o tempo aplaca o rancor.
Eu não gostava das flores
Não gostava de cozinhar
Muito menos de perfumar-me.
Mas o velho sábio persiste em
Acariciar-me com as pétalas do tempo
Que beijam a minha revolta
A poeta miserável em mim
Abrasa a cinza das réstias
Dos sonhos, dos abraços bruscos
Dos cheiros ruidosos, dos risos
Maliciosos, enfim eu persisto
Em permanecer com o espírito
Doente e escondo o perdão
Nas trevas mais profundas
Do meu ser.
Gostamos que nada acabe
Dos pães e peixes que
Abastecem a nossa mesa
Do vinho que hidratam-nos a alma
Mas lá no fim
No caminho que temos
Muito medo de percorrer
Na cama que vivemos
Com pavor que seja fechada
No amado que aprisionamos
A alma para não abandonar-nos
Na casa que criamos laços
E amarramos para não perder
Tudo terá de ser renunciado
Gostamos tanto da eternidade
Que não sabemos fazer
Os dias eternos.
A tristeza maior é que tudo
O que sentimos pode ser
Eterno num segundo
E repetir todos os segundos
Eternos.
Emoção
Tresanda o esgoto e a emoção
Transvase de um interior empobrecido
Relíquias de uma desilusão
Pelo seu próprio cheiro intoxicado
A obsessão de ser aceite, aceite
Aceite num mundo a que não vou pertencer
Universo que penso conhecer
Sonho de paz e contacto benevolente
A minha matéria é um inferno
Tubo do peito soa como asno
Que cantarola um doce ronco
Zombam-me nos vazos sanguíneos
Serpentes, emoções, insectos curvilíneos
Sem escolha, renegando este tronco
Qualquer
As poeiras assentam-se no cento da lata ruidosa
Suplicando os sentidos a inexistência do
Calor e do cromossoma que dançam na náusea
O sentir do orgulho que se alimenta
Da saliva dos vocábulos malfazejos
Que são suspirados pelo amor
Amor não correspondido e não compreendido
Esta carne ossada descai pelo cansaço
Das letras desposadas no fundo de
Qualquer recipiente
Longínquo de qualquer clareza
Sentimentos usurpam a vontade de ser presa
Numa prisão sólida e dura como a ausência
O desejo de formar gelo indestrutível
Mas quando reencontramos as poeiras
E os ódios do nosso sangue
Fazem bailar os pós dos rancores
As nossas raivas movem os arreios das rochas
Entregando o mar entristecido
Noite muda
Carcaça do meu ser
Abana como a vela dum barco perdido
Indagada pelo suspiro do vento
Meu coração inala a cor do vazio
Os passos dormem na areia
Ancorando os sonhos dos palhaços
Os meus olhos se divorciam da lua
Chove a luz fria sem lágrimas
Tempo sedento engole minha energia
Os astros rasgam o vestido da alma
E eu me reduzo ao brilho da noite muda
Glória Sofia nasceu em 1985 em Cabo Verde, no continente africano. Formou-se em Engenharia e Gestão do Ambiente pela Universidade dos Açores. Participou de vários festivais de poesia e encontros culturais na Europa e Estados Unidos. Publicou seis livros, colaborou com periódicos e antologias. O texto que acompanha sua contribuição para Sphera, enviada a 16 de janeiro de 2023, enfatiza: "O amor por sua terra a fez aceitar o desafio de ser representante (...) de vários grupos literários, como, por exemplo, Immagine & Poesia e Unión Mundial de Poetas por la Paz y la Libertad, World Literature Academy, em Holanda, onde atualmente reside, acreditando que, para além de escrever sentimentos, precisa de (sic) falar ou mesmo gritar realidades, agindo".
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