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Foto do escritorRevista Sphera

Três contos de Edson Lopes


Imagem: Sol vermelho (1951), de Iberê Camargo



Casebre


Autobiografia vista como um mapa repleto de imperfeições. Retas podem ser curvas. Planos à base de elevações estruturais. E quem objetiva serras, montanhas, murros de morros em pontas de facas das portas do céu, morre em um sopé.


Entretanto, uso alguns pincéis com tinta, para esverdear uma campina, que insiste em virar deserto. Suponho-a em atitude de protesto por causa de minha constância em querer deixar marcas em seu corpo. Um sol amarelo. Chuva de arroz. Castelo de areia. Não jogue estes diamantes aos porcos. São apenas cristal, mas tão bonitos!


Por estar no mês de maio, rabisco e me arrisco a dar vida com lápis de cor a uma infinidade de flores singelas. Digo que “coloro” e lembro-me de quem se ocupa em não ter culpa de maltratar a língua portuguesa ter me informado que não se conjuga este verbo em primeira pessoa. Doce, porém brava, professora!


Na parte mais solitária do terreno, onde umas pegadas decidiram ficar para a posteridade, ouso esboçar três tigres tristes, viciados em fazer tropeçar palavras, que tento expressar, a fim de impressionar a senhorita de minha mais terna afeição. Trafiquei os três banguelas de Bengala e, com eles, trouxe, de bônus, uma borboleta caribenha, que inexplicavelmente grita, sem parar. Trouxe, ainda, certos pássaros, que prestam culto a um silêncio mórbido.


Momento de rasgar, de queimar, de interiorizar os sentimentos que o anseio quer expurgar de si, por julgá-los uma legião de sádicos demônios, oriundos das mais profundas entranhas dos infernos.


De dentro, verso. De fora, prosa.


Trouxe-me de novo aquele decadente pesadelo, pequena Ana? Você parecia querer se vingar de mim.


Quando era bem menor, eu a deixei no berço, onde a pusera a velha Tarsila - semente transformada em árvore, depois em raiz, para deixar alguns frutos mestiços na terra -. Tarsila era a mãe de José, de Geraldo, de Márcio, de Virgínia, de Fátima, de Rosa, de Carlito; era sua mãe, pequena Ana, para quem eu virava as costas, enquanto você abria os braços para ser carregada. Velho Arlindo não prezava Tarsila, nas palavras dele uma índia que contrai matrimônio com um negro não podia valer muita coisa. Eu não sabia quase nada, mas pressentia ciúmes naquele homem que falava às vezes mordendo até sangrar os lábios, o olhar carregado de colossal desdém.


Eu era pouco maior que a pequena Ana e costumava até passar despercebido sob os telhados daquele casebre enorme, de vários corredores, dispersos, em diferentes direções. Tais corredores ocupavam um espaço bem maior da casa em relação aos quartos e deixavam em quem visitasse o lugar a nítida impressão de vê-los se comprazerem em comprimir os que ali moravam.


De vez em quando, eu era agraciado com um mimo da bela Fátima, a segunda mais velha das mulheres filhas da velha Tarsila. A moça me pegava no colo e parecia querer me dizer algo que me fizesse feliz. Mas aquela família toda quase nada era de falar. Mesmo o Carlito, companheiro de brincadeiras, quase não se fazia ouvir.


Ah, mas quando Fátima me balançava em seu colo macio, não sei se imaginação, eu ouvia poesia dos seus lábios mudos. Eu sentia o sol clarear o corpo soturno do casebre da velha Tarsila.


A pequena Ana, no berço, procurava, inutilmente, expandir sua geografia, abria os braços. Parecia intuir serem demasiados os mundos a se abarcar.


No balanço macio, sob cafunés e afagos das doces mãos de Fátima, eu desfrutava, como nunca, aquele instantâneo, hoje apenas parte de um álbum de família.




Arenga


Quase não consegue esconder seu olhar vazio, perdido, mesmo com a possibilidade de, por mais que ande, conseguir ir apenas perto demais. Não. Não feito um porco. Ao mirar o chão, não extrapola. Mãe maldizia de porco andar de cabeça baixa. Após, aumenta um pouco e foca o morro de cristais. A picareta com a ponta ampliada como a pá está seminova, ainda luminosa, como algumas pedras de cristal, que às vezes cavou do cascalho.


O chão encascalhado esconde as pedras. As que sinalizavam veios chamava de dentes de cão. Ao querer cavar as pedras, ignorava que aquele terreno nunca lhe pertencera. Um trocadilho lugar-comum beirando estupidez. Morrer naquele morro? De tiro que arde e queima? De faca que corta e fura e sangra?


Levanta-se. Empertiga-se. Move o pescoço para um lado e outro. Como se não fizessem parte dele suas pernas se esticam feito corda a sustentar o corpo de um enforcado. Ele fica nas pontas dos pés como um bailarino. Aquele, do corpo de balé russo, visto em um filme. Ainda na TV em preto e branco.


“Quer um pouquinho?” Seu Nico lhe oferece açúcar. Tem um saquinho de plástico cheio, seguro na mão direita.


Recusa, sem agradecer, e mal espera a hora de contar aos irmãos, à tardinha, que o velho da roupa de mendigo, que se tornara seu encarregado, misturava doce no mexido de arroz, cebola e feijão, cozidos com sal. Guilherme, aquele menino que só serve para buscar a bola quando esta cai do outro lado da cerca, onde há eucaliptos, disse que seu pai põe sal no leite e no café e toma, pois trabalha de noite, na fábrica.


Mastiga a comida sem nenhuma fome. Come, apenas, porque teme ser invadido pelo mesmo vazio que iria se apossar de seu coração um tempo depois.


Após o almoço, a capina, entre os curtos espaços vermelhos que formam trilhos, entre a roça.


“Parece triste. Ressabiado. Algum entreveiro, menino?”


Meneia, de leve, a cabeça. O velho lhe parece rilhar os dentes quando a enxada bate em uma pedra. Gastura? Tem pensamentos esquisitos como o de o próprio corpo sendo defumado em uma grande fogueira, como o de se desfazer tal qual o suor que lhe encharca o corpo, tal qual virar nuvem. Aí deseja o firmamento escuro. Sabe que há tempos seu Nico prevê águas propícias. “Mas só Deus sabe a hora.”


E se na empreitada espreitasse sementes penderem fartas dos pés de feijão, através do sonho do velho, no entanto, acordado? Aquela estória do menino que levava uma vaca para vender na feira encontrando um velhinho com um pé de feijão para negociar. Abestalhado.


“Eu trocava, mas é nunca.”


Acordava. “Será que seu Nico põe sal no café igual o pai de Gui?”


Às três e meia tomaram café e comeram beiju. O café de seu Nico, sem açúcar. Com sal? Pensava que não. De qualquer modo, acrescentaria um ponto ao conto sobre seu Nico. Recusou o segundo beiju que o velho lhe ofereceu, que estava enfarado, que mãe fazia quase todo dia, por causa dos olhos da cara do preço do pão.


Menino tinha de ajudar cedo a manter comida nas latas da prateleira. Estudar, se desse. Escola nunca deu dinheiro, de imediato. Quando deu. Há um orgulho indizível quando veem atrás de si a ausência de capim e ervas daninhas, a roça organizada. Como uma paráfrase/paródia mais para pastiche de um verso de Rubem Braga, os pés de feijão, alinhados, enfileirados eram uma soldadesca verde anã. Quase escurece ao voltarem para casa.


Seu Nico carrega também uma foice. Diz que assa-peixe costuma guardar jiboia. Que tal espécie de cobra não tem veneno, mas tem dente maligno. Que já comeu. Que carne é gostosa.


Queria gritar “TRUCO! TRUCO!” como pai fazia quando alguém dizia mentira. Respeita os cabelos brancos. Não quer atraiçoar de memória. Contará só à irmã com quem tem mais proximidade? Não contará a meninos com quem quase não tem tido mais tempo de brincar? Quem manda velho ter doidice de comer açúcar na comida de sal? De contar mentira? Então, serviria de vingança, ele contar, também, que o velho Nico misturava sal no café.


Se duvidasse, quando de encabulado quem o ouvisse contar murmurasse Virgem Maria, ele forçaria o riso comum a quem já conhecia a anedota. Não que o riso de quem conta a anedota tivesse a mínima importância.



Prato de fome


O tempo: como os bichos que trocam de casca ou de cor. Como folhas de árvores que se colorem e murcham, secam e apodrecem no chão ou outro lugar. Há uma árvore, cuja copa cresceu sobre o telhado. O menino vê um lagarto passear pelo seu tronco antigo. Quisera vê-lo mudar de pele, feito cobra; de cor, feito camaleão. Tudo, em câmera lenta. A chuva que começa a cair, fina, depois engrossa. Tenta se abrigar na área que o telhado cobre. Uma goteira ininterrupta cai sobre o borralho da fornalha onde mais cedo sua mãe cozinhara osso. A mulher o chamara pela terceira vez para entrar. A água continua a cair, as mãos, feito conchas, ele a bebe e acha bom o gosto de telha. Um vento empurra chuviscos para perto da parede onde o menino se encontra. Molha as fendas e da terra dos tijolos de adobe sobe um cheiro de terra vermelha molhada. Unir a vontade de comer terra à ação.


A entrada acontece, a um novo chamado. Mãe pede para vestir camisa, não correr riscos, não pegar friagem nos peitos.


Na vez do outro dia, perguntou com voz rouca, quase sem força:


- Mamãe, o que tem para comer hoje?


A mulher fervia, pela terceira vez, aquele osso. Se não tivesse medo de desanimar os que, com brincadeira, no quintal, tentavam enganar a fome que os esganava, responderia:


- Eu cozinho a fome. É, eu cozinho a fome.


E grossas lágrimas que ela não deixaria ninguém ver lhe viriam à flor dos olhos. E um passarinho talvez contasse ao mundo ter visto aquela mulher tão afeita a intempéries chorar. Uma tosse meio forçada não é difícil. A doença é parceira da pobreza. Um olhar de condolência do menino.


- Não é nada. Tossir me faz chorar.


Aquele a quem ela esclarecera acerca da escravidão que guardava dentro de si era quase um homenzinho, mas era tão magro!


Chegada do pai do serviço. Trabalha como lenhador em um bosque de eucaliptos.


Cumprimenta a mulher e o menino quase rapaz com certa reserva. Seu jeito de ser. No começo de marido, de pai, não fora assim. Aquele suor. Aquele trabalho miserável. Forneiro de carvão. Aquele cansaço asfixiando o amor. Pobreza e sofrimento moldaram seu ser. Do vinho para o vinagre. Há muito não fazia um carinho na esposa. Aquelas mãos cheias de calos. Há muito, nem um beijo na face daquela que inúmeras vezes lhe dera prazer. Nem um abraço.


O homem faz sem muita graça um cafuné nas outras crianças que a mãe chama.


- Lavem as mãos, para almoçar.


Ao tirar o chapéu, o homem pede que todos fechem os olhos e façam uma oração. Após, a mulher serve de uma panela o caldo ralo de osso com um pouquinho de arroz em pratos rasos, bem rasos.


Enquanto movia a colher de caldo e arroz até a boca, o menorzinho da família mirava de modo profundo a superfície rasa do prato, o desenho de uma borboleta colorida pousada em uma flor. No mesmo desenho, uma menininha de cabelos trançados e vestidinho vermelhos.

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2 comentários


francegripp
francegripp
19 de nov. de 2021

Como entrar em um sonho alheio e espiar as cenas que vão se erguendo com leveza e certa doçura. Lindos


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Afonso Baião
Afonso Baião
13 de nov. de 2021

A fluidez da narrativa, na leveza da prosa, sustenta a gravidade do poético.

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