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Sobre "A pupila", coletânea de estreia de Virna Teixeira na prosa publicada pela Kotter Editorial

André Dick


A pupila do mundo


Lançado pela Kotter Editorial, A pupila é a estreia da poeta Virna Teixeira como contista. Em alguns de seus livros de poesia, entre os quais Visita, Distância, Trânsitos e Como suturar lembranças, Virna já investia, em determinados momentos, na prosa poética. Em sua poesia, Virna lança um olhar microscópico sobre pequenos detalhes do cotidiano, sobre a ausência cotidiana e sobre viagens, revelando o corpo em movimento (de fuga ou de encontro), acompanhado ou solitário. Mesmo tratando algumas vezes de locais específicos, seus poemas podem ser vistos não como flashes fotográficos ou como postais, mas como uma significação do sentimento contemporâneo de procura. Uma procura, sobretudo, por aquilo que está deslocado: “pequeno, o / frágil / corpo / soluça / / vermelha, / a flor / entre os / dedos”, como ela escreve no poema “Calçada”, de Distância. Desse modo, é comum que seus poemas falem de deslocamentos, da insegurança do sujeito no mundo, sua solidão. Observa, para demonstrar isso, sobretudo os espaços que cercam esse sujeito: o quarto, a casa, a rua, a cidade, as paisagens que cercam essa cidade, a caminhada diária de pessoas, o comportamento humano em geral.


Um dos temas em comum com sua poesia, nos contos de A pupila, é o deslocamento de suas figuras, no sentido geográfico: os dois primeiros contos, “A pupila” e “La Locomotive”, mostram figuras femininas mudando de lugar, em busca de uma razão para a existência. Navegando por um mundo virtual ao mesmo tempo, suas personagens brincam com o universo psiquiátrico e com seus fetiches mais subjetivos, uma marca já apresentada em My doll and I, livro mais recente de poesia da escritora, tentando ampliar temáticas de obras anteriores. Isso inclui uma observação muito precisa sobre o universo contemporâneo, tomado por figuras que parecem entender a realidade como uma extensão de seus stories. A escritora acaba aproximando a proximidade de suas figuras e sua atenção para a faceta psicanalítica de uma análise da própria sociedade e seus impulsos, dosando também passagens quase científicas, no modo como as descreve, parecendo estudar uma anatomia da própria estrutura de cada conto, com outras abertamente descompromissadas, embora em ponto nenhum simplistas. Como escreve Antônio Mariano na contracapa, nos contos de Virna, as mulheres ocupam “lugar de relevo”, sendo “dotadas de um poder, consciente ou inconsciente” – e a maneira como elas se colocam mostram exatamente esse poder de deslocamento seja da palavra, seja de cada eu em movimento no mundo.


A linguagem bem-humorada (uma das personagens não aguenta mais ouvir a palavra “Lacan”) é muito difícil de ser alcançada e se destaca, a meu ver, no engraçadíssimo “Amazona”. Com isso, Virna revela, por meio de narrativas agradavelmente construídas em cima de detalhes sentimentais, um aguçado olhar para capturar certa solidão moderna, nutrida por desejos sexuais. Aqui, com a ajuda da progressão narrativa, cada conto reserva um desenlace final com certo sentimento agridoce, nos sintéticos “Quebranto” e “Kundalini”, ou a complexidade de relacionamentos, no ótimo “Devoção”. Esta pequena progressão para o conto sintético, em que tudo é minuciosamente costurado, cada linha servindo ao todo, sem se preocupar exatamente com elaboração de personagens, pois o discurso por trás é que se mostra enriquecedor, é o que mais anima a prosa atenta de Virna. Desse modo, talvez seja possível observar que a escritora tende a se encaixar principalmente na tradição de contos do Brasil que se encontra com o melhor Dalton Trevisan e também com Caio Fernando Abreu. Suas descrições são minuciosas sobre o todo, não se restringindo a pequenos espaços, e, ao mesmo tempo que descreve suas personagens, ela está se referindo sempre a um contexto mais amplo.


Com um universo psiquiátrico sempre presente, mesmo quando discretamente, o que ela já trabalhara com êxito na sua proesia Suíte 136, conforme Tiago Germano escreve na apresentação, A pupila reúne contos que “tem também algo de catarse coletiva, de justiça histórica ou poética”. É esta a expressão: “catarse coletiva”. As personagens de Virna parecem estar de partida, como em “Cherish”, mas querem, ao mesmo tempo, permanecer numa espécie de inconsciente coletivo ou dentro de um sonho. Isso já fazia presente, em certa quantidade, em seus livros Trânsitos e Distância, em que o eu lírico tendia a desaparecer por meio de paisagens, mas ficava sempre como uma espécie de praticidade dos sonhos direcionada a uma grande descoberta.


Nisso, incluem-se as referências cinematográficas em muitos contos, como uma personagem evocar o coelhinho fervendo entregue por Glenn Close em Atração fatal e certa subversão de impulsos poderia ser um complemento a certo universo de David Cronenberg de um Crash, por exemplo; além do fragmento poético de “Ato falho”:


Parecia que haviam saltado de um picadeiro, da altura de uma imagem cinemática. Como num filme de Wim Wenders.


Nesse conto, aliás, a figura feminina de Virna parece encontrar a de Alice numa de suas caminhadas por lugares urbanos. Exatamente como nos filmes de Wenders, em que cada indivíduo parece estar em busca de uma localidade, mas disperso pelo mundo, a exemplo de Paris, Texas e Estrela solitária. O cinema é uma referência para a escritora porque justamente, como a literatura, consegue desenhar o perfil de figuras por vezes ainda não nominadas ou ainda não descobertas; é como se ela, a exemplo de um filme, registrasse na tela impressões de um país das maravilhas antes da volta de Alice ao mundo real. A personagem do primeiro conto não deixa de ser o espelho desse mundo: querendo descobrir a medicina, ela o descobre de maneira vital. Com imagens e figuras bem delineadas, A pupila navega entre o quarto, mais pessoal, e esse mundo inesgotável. Uma estreia exitosa de Virna como contista.

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