Completaram-se cinco anos da morte prematura de Jair Alves Corgozinho Filho neste 2021. Estes poemas fazem parte da coletânea de inéditos intitulada Rio que me enviou em meados de 2014. Faleceu em 2016 antes que pudéssemos conversar a respeito do trabalho e possível publicação. Chegamos a marcar alguns encontros naquele mundo pré-Pandemia, mas não deram certo. Eu sempre na estrada, no ar, e ele sempre em BH.
Poeta, ficcionista, ensaísta, Jair foi um dos mais talentosos jovens escritores e professores de literatura mineiros aparecidos nos anos 1990, com uma conduta humana, intelectual e literária notável. Foi sujeito de atitude, com personalidade destemida forjada nos dias sombrios da Ditatura. Meu grande amigo, estivemos juntos na construção da Revista Orobó em Belo Horizonte, periódico que teve três números impressos (1997, 1998 e 1999).
Graduado em Letras pela UFMG, onde também realizou Mestrado sobre Os ratos de Dyonélio Machado, Jair publicou no primeiro e no segundo número de Orobó, respectivamente, um ensaio sobre Dyonélio e um conto. Anos mais tarde, em 2013, publicou dois ensaios no Kadernu di Ynwenssões, blog da Revista Orobó, um sobre Machado e outro sobre Bandeira.
Conhecemo-nos na Faculdade de Letras da UFMG por volta de 1993. Publiquei ali no jornal Não, publicação do Diretório Acadêmico da FALE que criei e dirigi, aquele que talvez tenha sido o primeiro e um dos poucos poemas de Jair a chegar a público. Tornamo-nos amigos de atravessar madrugadas no Lucas, no Edifício Malleta, referência da boemia cultural no Centro de BH, falando de assuntos os mais variados: literatura, política, cinema., música, pintura, educação, cultura etc.
Além das publicações citadas, Jair publicou artigos em revistas especializadas apenas, bem como em livros didáticos. Certamente, deixou muita coisa inédita. Estou tentando conseguir autorização de familiares dele para a publicação de Rio.
Os sete poemas aqui estampados em homenagem aos cinco anos de morte de Jair Corgozinho dão a medida da sua inquietude. Era um sujeito apaixonado pelas artes, pelos livros, pelos discos, pelos filmes, que sentia tudo artisticamente, que amava a vida com naturalidade, que não se rendia aos imperativos da razão cínica que atormentaram nossa impossível Geração 90. Escrevia, pois, com a estranheza de quem realmente sabia o quão bruta é a coisa-vida!
Anelito de Oliveira
Jair Alves Corgozinho Filho
Orquídea
O amor que me perturba e move
alberga-se entre o culto e o insulto a uma mulher.
Se me perco, tarde e madrugada, ou quando o mundo acaba,
Sua voz, que me encontra, é flor e vento que me tateia e fere.
Cálida antítese, flor e ventre, flor turva, que retoma o que dá.
Cravo
Estou pensando a morte,
Não como se tem pensado.
Penso sua pele e cheiro,
Pétala de cravo.
Habitada em mulheres e homens,
Andrógina e híbrida,
Reta, ramificada.
Tango de flores.
Estou pensando a morte,
o rasgo raro de seu aquiescente jardim.
o silêncio mole de sua floricultura.
o seu manto de craveiros.
o cravo entre os lábios.
o falo cravado
Nos seios.
No ânus.
Flores Mortas
O problema de uma flor, tenho provas,
é não ser apenas flor. Flor, pura e simplesmente, flor.
É que inventaram a floricidade da flor.
“Doces flores
sozinhas podem dizer o que a paixão tem medo de revelar”,
disse o poeta Thomas Hood.
Não sabia o que dizia.
Flores sozinhas são flores sozinhas.
Quando dou uma flor
é flor que foi dada, dália ou rosa
flor apenas até que seja flor morta.
Flor morta sem problemas.
Não despertarão nunca mais
as flores mortas sem ventos.
Louvada seja a cegueira
das flores mortas sem olhos
o silêncio
das flores mortas sem linguagem.
Rosa
Carne.
Sangue.
Veludo.
Arde o amor escuro.
Glande.
Pétala.
Espinho.
Grita o amor diminuído.
Príncipe negro.
Rosa morta.
Mito desdém.
Entender o espinho como espinho
Não para tocá-lo.
Esse é o fascínio.
O pescador distraído
Um pescador fatigado dos peixes
tomou nas mãos um livro em concha
e foi fisgado por um feixe de linhas,
pela pérola irresoluta de cada palavra.
Nunca mais foi visto, mas diz a lenda,
entre barcas e barrancos,
que agora, no solavanco das horas,
pesca histórias de velhos e mares,
no ir dos rios, dos livros e margens.
Chiste
Uma palavra no início de uma página
É uma fronteira.
Uma palavra no fim de um livro
É uma fronteira.
Um homem antes de uma página
É uma fronteira.
Um homem depois de um livro
É um milagre.
Despedida
Saio devagar,
o passo mudo,
para não esbarrar
no suicídio
da palavra que se desprende
da mão e se lança,
sem escudo,
no idílio do papel profundo.
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