Literatura branca e aquilombamentos
Quilombo: Cartografía de la autoría negra brasileña (Tinta Limón Ediciones, 2020) é o título de uma antologia recentemente publicada na Argentina. Uma das questões – talvez a mais recorrente – que surgiu a partir da recepção crítica daquele país e que Lucía Tennina, organizadora da coletânea, foi instada a responder, diz respeito ao seguinte: “Por que fazer uma antologia de autoria ‘negra’ brasileira e não uma antologia simplesmente?”. A reposta da organizadora aparece em texto que integra a obra. Entretanto, apresento aos leitores minha opinião – ou algumas considerações – sobre o assunto.
Mas, antes, cumpre observar que há mais ou menos trinta anos, essa era também uma dúvida recorrente e frequentemente oriunda da parte de escritores e intelectuais brancos brasileiros quando se deparavam com livros organizados a partir de análoga linha de corte e seleção. Tais obras soavam como gestos sem sentido, como se representassem um crime de lesa universalidade relativamente aos valores consagrados da literatura. Hoje o panorama é bem outro. Grandes editoras começam a publicar livros de autores negros como se fosse a coisa mais natural do mundo. É irônico porque essas mesmas editoras até há pouco tempo sempre se mostraram soberanamente indiferentes à produção dos escritores negros, concordando com a suspeita infundada do sistema literário a respeito da “qualidade literária” desses autores.
Voltemos à pergunta. Por que fazer uma antologia de autoria negra brasileira e não uma antologia simplesmente? Porque na verdade, não obstante as tentativas eruditas de convencimento, não existe uma “literatura brasileira”, o que temos mesmo é uma literatura branca brasileira, desde sempre defendida pela noção de fachada da universalidade ou de uma vaga brasilidade apaziguadora de todos os conflitos. De certo modo, quando surge a reivindicação de uma literatura negra o que também é trazido à luz é o engodo de que a literatura não tem cor. Assim, quando o Silvio Almeida argumenta, por exemplo, que o racismo estrutural inventa o branco e o negro, isso significa que é preciso também que o escritor branco se reconheça como tal, em vista da desejada superação dos horrores produzidos pelo racismo naturalizado. A crença em uma literatura brasileira contente de sua formação apontada para a universalidade, para uma espécie de ser brasileiro pretensamente pós-racial, é uma das faces da negação do racismo no âmbito da criação literária. Em termos práticos, uma antologia de poetas e escritores negros reforça a necessidade de romper o silêncio cínico do sistema literário relativamente a essa produção.
Outro tópico interessante para a discussão se refere ao modo como uma parcela do público leitor nutre a expectativa de que autoras e autores negros sempre abordarão questões étnico-raciais em suas produções. Esta seria uma expectativa razoável ou justa? O que explicaria tal expectativa?
Digamos que a expectativa é, sim, um fato na economia das significações dos poemas, contos e romances criados por esses escritores. Contudo, não concordo com a expectativa. Vejamos algumas coisas. A produção literária dos escritores negros reunidos ao abrigo do conceito de literatura negra, produção que também é conhecida como literatura de autoria negra, afro-descendente, afro-brasileira e negro-brasileira, nas últimas décadas tem sido objeto de larga fruição e análise tanto na área acadêmica, quanto na dinâmica do sistema literário em sentido mundano. Ainda que as conquistas devam ser festejadas, escritores, leitores e pesquisadores envolvidos com essa produção sabem que o esforço para a ampliação da diversidade do cânone e do mercado literários – um dos pressupostos dessa literatura – revela-se como um trabalho muito árduo.
Minha intervenção nessa discussão procura se constituir também em um movimento na direção de prestar o devido respeito estético-crítico à produção desses escritores e poetas negros, porém entendendo que a variedade dessa produção deve ser abordada como manifestação de extração necessariamente literária. Abordagens desse tipo, aliás, não têm merecido um investimento de análise mais forte, uma vez que aspectos extra-literários em alguma medida têm sido mais prestigiados pela recepção contemporânea. A razão para esse tipo de recepção se explica em parte porque o sistema literário é a representação especular, embora com suas singularidades, de uma série de determinações sociais, raciais e econômicas abrigadas sob o arco ideológico. Não resta dúvida de que a literatura tem relação com o pano de fundo social e histórico, porém ela não é simples emanação do contexto, nem serve de mero sucedâneo a aspectos identitários ou de classe.
Contra tal expectativa defendo o surgimento e o reconhecimento de outras vozes poéticas contemporâneas negras de modo a redefinir ou alargar o conceito de literatura negra e até mesmo fazê-lo vacilar. Porque na medida em que mais prestigiado e respeitado se torna o conceito, mais justificados são os gestos de eleição e exclusão – suportados pelo conceito – articulados às tentativas de dar solução explicativa e classificatória à diversidade de vieses estéticos que começam a surgir aqui e acolá.
Minha crítica objetiva demonstrar que o conceito – que sustenta essas expectativas meio convencionais – não é senão uma espécie de escada ou de ferramenta cuja utilidade é provisória. Tem alguma serventia para as condições atuais, não há dúvida. Contudo, os poemas e as novas criações do presente vão impor aos teóricos e pesquisadores a necessidade de pensar em outros óculos de análise na medida em que seja imprescindível mirar o quadro que avança sobre eles.
Em conjunção com as interpretações sobre a diversidade de modos como a produção literária de negros tem se manifestado, a demarcação do conceito de literatura negra se constitui em uma espécie de intervenção de cunho antológico lato sensu, isso porque o conceito acaba fazendo as vezes de uma plataforma seletiva que retém em suas malhas valorativas apenas os textos daqueles escritores confirmadores do modelo ou conformados ao modelo.
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