Mirtes Helena Scalioni
João com a amiga Beth Santos no prêmio BDMG Instrumental. Crédito: Arquivo Família JPC.
Já tem quase vinte anos. Numa reunião de fim de ano na minha casa, regada a cervejas e músicas tocadas num moderníssimo CD Player, a certa altura, depois de cinco horas de festança, os poucos que restavam naquela sala começaram a dançar ao som do mais autêntico samba de roda da Bahia. Impossível resistir a tanto ritmo. Nem o João Paulo, tão tímido quanto discreto, resistiu. Caímos todos no balanço, cheios de vida. Eram outros os tempos.
Quando chegou em casa – ele e sua doce Cibele contaram –, João chorou muito. O motivo? A pura emoção de ter amigos, uma das alegrias da vida dele. Mais do que a inegável e poderosa cultura e capacidade intelectual do João Paulo, o que nos unia era o gosto pelo trottoir - como ele gostava de chamar - a boemia, as palavras molhadas por cervejas e/ou vinhos, a goela solta e pronta para novas prosas, risos ou choros. Sempre com amigos. Uma vez me disse que eu era muito intuitiva. Acatei como um elogio.
Com João Paulo e Cibele, Silvio e eu quase nunca falávamos de intelectualidades. A não ser, claro, sobre os livros que ele de vez em quando nos trazia para emprestar, atento ao nosso gosto e demandas. Antes de nos entregar, apresentava cada obra, falava um pouco das histórias e tramas, aguçava nossa fome de ler. Nunca perguntei ao João sobre algum livro que ele já não tivesse lido. Era mesmo um danado. Depois falávamos de novelas, futricas, banalidades, comidas, futebol – eram longos os debates entre ele e Silvinho (como ele falava) sobre o talento do Ronaldo Fenômeno.
João cozinhava muito bem. Gostava de pesquisar receitas, incrementar, inventar. Tinha paciência para as longas esperas das marinadas de véspera, para as carnes assadas em fogo brando, os lentos ragus. Comia com gosto, meio guloso, celebrando a mesa - de novo e sempre - com os amigos. Uma vez por ano, no mês de setembro, me fazia um pernil de aniversário que ele mesmo encomendava, temperava e assava devagar. Inesquecíveis esses encontros ao redor dessa farta gostosura que azeitava nossos laços, renovava e reforçava nosso afeto. Ora com pão de queijo, ora com feijão tropeiro.
Algumas vezes viajamos os quatro: Salvador, Rio, Cabo Frio, Coluna. João tinha uma disposição quase obstinada para as estradas. Paciente, apreciava as paradas para o pastel, rocambole, pão com linguiça e o que mais viesse. Faltou cumprir a promessa de tomar uma jarra de clericot em Santana do Livramento, morar uns três meses em Buenos Aires, voltar ao Rio, comer outra leitoa com Carlos Herculano em Coluna, passar uns dias em Cartagena... Deu tempo não.
Em volta das muitas mesas que frequentamos vida afora, sejam elas em nossas casas ou redações, mas principalmente nos sagrados recantos dos bares, algumas vezes a gente filosofava. Ele tinha o sonho de dar aulas gratuitas de Filosofia para quem se interessasse e eu sempre prometia reunir um grupo de alunos. O projeto, como outros, não se concretizou. Nessas infindáveis conversas, às vezes ríamos do nosso ateísmo convicto e juramentado. Eu admitindo meus choros e tremedeiras cada vez que via uma celebração religiosa na TV como o Círio de Nazaré ou em Aparecida do Norte, ele contando como adorava acompanhar, todo ano, com respeito e contrição, a procissão de Sexta-Feira Santa. Era carnívoro contumaz. Mas nunca comia carne durante a quaresma.
Na penúltima vez que nos encontramos, quando ele recebeu uma homenagem na Livraria Asa de Papel, me entregou, mais uma vez, uma sacola cheia de livros. Me apresentou rapidamente os autores que eu não conhecia, incentivou, elogiou. E quando eu quis saber mais da saúde, confessou: estou atravessando um deserto. Contou das dores, do cansaço, dos enjoos, mas em nenhum momento falou de desistir. Pelo contrário, combinamos o próximo encontro – na minha ou na sua casa? – e o cardápio – leitoa ou pernil?
Dias depois, quando Silvio e eu o visitamos na casa da irmã Bernadete, na Serra, ele já bem debilitado, de novo João se emocionou falando de amizade e choramos. Mais uma vez, entendi que o que nos juntava era nossa eterna disponibilidade para o encontro, apesar dos tempos turvos. Sem muita vocação para a tristeza, a gente sabia, com coragem, que sempre haveria espaço para mais um samba, uma roda, uma dança. É como se soubéssemos que, como parte de uma estranha confraria, somos aquele tipo de gente que acredita que há sim um lugar diferente pra depois da saideira.
Muito lindo, comadre!!!!