A complexidade da obra ficcional do poeta cubano evoca toda uma crítica que tem se debruçado tanto em tentativas pormenorizadas de aclarar conceitos, quanto em aproximar peculiaridades da escrita de José Lezama Lima já flagrantes em seus poemas. O caminho que aqui se procura propõe abordar os conceitos do sistema poético lezamiano vertidos em exemplificações de sua prosa, ou seja, mostrar como a coisa ficta, o romance, engendrado nos desvãos e descaminhos das famílias Olaya e Cemí, conjugados ao encontro da personagem principal com o poeta Oppiano Licario, refaz, reformula e concretiza os pensamentos de Lezama Lima para uma poesia em seu sentido lato.
Oppiano Licario é a continuação póstuma do romance Paradiso, Magnus Opus publicado pela primeira vez como livro em 1966. Desde a aparição dos primeiros capítulos ocorridos nas páginas da revista Origenes, em 1949, a constância da construção do chamado “sistema poético” de Lezama Lima se mostra indubitável, de tal forma que seria, segundo Irlemar Chiampi (1996: 11), muito difícil se falar de uma evolução da poética do escritor cubano: parece que toda obra de José Lezama Lima trabalha na tentativa de afirmar algo em que ele pensava desde suas revistas literárias. O romance Oppiano Licario, publicado no ano seguinte à morte do autor (1976) reitera essa lógica, a saber, boa parte da teorização metafórica e imagética vem aparecer exemplificada nessa segunda parte da narrativa de José Cemí.
Júlio Ortega (1991: 39) já advertia ainda na época em que o autor estava vivo, quando a recepção do romance levava em conta Lezama Lima como intelectual ativo, referendado ora como ícone do pensamento cubano, ora como um traidor contrarrevolucionário, que escrever sobre Paradiso, e por extensão, aqui adimos, sobre Oppiano Licario, era “una empresa condenada de antemano a la insuficiencia, porque esta enorme novela es prácticamente irreductible a la imagen de un proceso o una estructura que la crítica presume revelar en los textos”. Paradiso, subtraído das livrarias em Cuba nos anos 1960, não atingia boa parte da classe leitora, precisando os críticos recorrer às edições mexicanas para confirmar o “romance escandaloso”, um romance “muito difícil e hermético, para não dizer incompreensível”, como disse Cintio Vitier (1989). Proibido somente algumas semanas depois de sua publicação em 1966, o romance ganha em 1968 uma edição da editora mexicana Era, edição que possibilita a Emir Rodriguez Monegal (1968: 40) dizer que “ahora que el libro ya está en manos de todos es cuando parece más necesario que sea leido en el contexto más amplio posible: el contexto de toda la obra creadora de Lezama Lima”. Ainda para Ortega (1991: 39), todo o romance seria o debate e a descoberta de um canal que leva à descoberta e formulação de uma concepção de realidade baseada na poesia. “Esta coherencia del aprendizaje poético es lo más visible y también lo más secreto del libro, porque a la vez establece su forma y su proceso hacia una poética integradora.”
Integração que pode ser vista pelas sequências metafóricas que engendram a configuração do que constantemente Lezama chamou “espaço gnóstico”. As personagens, e nós leitores, integramos a realidade (ou sobrenatureza) a partir da criação, através da imagem, de um espaço outro, entre o telúrico e o estelar, ou seja, entre o mundo das vivências cotidianas e o mundo da “vivência oblíqua”, quando a imagem não se desvanece pelos atributos espaço-temporais que nos cercam e dos quais a poesia nos libertaria. Esse seria o “método hipertélico”, que aponta para além de sua finalidade. Para Lezama Lima (2000: 288) o romance, sobretudo o seu, seria “o relato supraverbo de lo entrevisto, la fiesta del nascimiento de nuevos sentidos”. Esses sentidos provêm do engendramento metafórico, ou segundo Sarduy (1999: 1162), “de la fuerza centrífuga de como es tal”, onde a “relación entre los términos parece resultar de uma autodeterminación del texto”, pois para Lezama Lima (1996: 130) “Em toda metáfora há como que a suprema intenção de obter uma analogia, de estender uma rede para as semelhanças”, e sendo a semelhança um resultado entre o conhecido e o desconhecido as decisões associativas estabelecidas pela metáfora far-se-ão imagem, vivência oblíqua. O escritor cubano buscava, assim, propor um sistema poético, embora desvinculado de uma pretensa sistematicidade invocada pelos filósofos, um projeto poético que tinha por missão, segundo Irlemar Chiampi (1996: 10), inventar “uma ordem do mundo pela ótica de um sujeito metaforizado, desvinculada dos supostos racionalistas”, pois para Lezama não interessa “o modelo do universo em ângulo científico, mas como ele é remodelizado pela poiesis, como nos é dado através da imagem – o que vale a dizer, como a história e a natureza se fazem e refazem na linguagem poética.”
Se Paradiso nos deixa de frente com Oppiano Licario, o Ícaro, “el nuevo intentador de lo impossible”, a obra que continua o romance de 1966 é, nas palavras de Reinaldo Arenas (1983: 21), “como un ensayo, como una interpretación sobre la vida de Oppiano Licario”. Dessa forma, quem adentra o mundo do inacabado romance Oppiano Licario, vem conduzido pela mão do último encontro entre José Cemi e o mestre poeta, em Paradiso. Continuamos a nos deparar com os pensamentos poético-filosóficos da tríade Cemí-Fronesis-Foción e suas progressões e digressões tanto no mundo de Cuba, quanto passeando pela Europa. Muitas das fórmulas de seu sistema, disseminados nas bocas e vivências das personagens que compreendem os romances, são, em Oppiano Licario aprofundados, continuados, exemplificados. Assim, Fronesis, principal amigo de Cemí, quando se encontra no balneário de Ukra, após ter uma relação real malfadada com Cidi Galeb, e uma relação onírica com seu amigo Foción, relação essa que vinha não mais “com a finitude do corpo, mas com a infinitude da imagem”, encontra-se ele, pois, sozinho na casa de seus novos amigos e é assolado pela rede de metáforas que o permitirão refletir sobre os eventos ocorridos. Assim, o capítulo 3 de Oppiano Licario (1997: 89-90) narra:
“Abrió la puerta de la sala y recorrió la cuadra varias veces. La madrugada no había abandonado aún su silencio en favor del gallo y de los can toa lecheros. Volvió a entrar en la casa, pero en ese intervalo la casa se había vuelto sobre sí misma, la cal, el agua aprisionada, el odio estelar de los techos, los glúteos grotescos de los lavabos habían endurecido sus contornos para fortalecer la casa de cualquier acechanza. La blancura de la cal, como la cáscara de un huevo, encerraba una nueva vida. La casa, ya sin los moradores que se habían marchado como íncubos a la madrugada, lucía como un reflector sobre el mar, su blancura se refractaba, se partía, tenía algo de oficina recaudadora vacía, de gruta submarina. Fronesis tuvo la sensación de algo que le había estado reservado durante mucho tiempo y que ahora se le entregaba.”
Na sequência acima temos silêncio, brancura (cal, água aprisionada, ódio estelar, casca do ovo) associados à fortaleza (los glúteos grotescos de los lavabos), proteção do vazio (casa) e da casca do ovo convertidos em rigidez (gruta submarina). Todos os elementos sonoros, táteis, visuais conjugados na visão da madrugada na casa vazia por Fronesis, aliadas à memória do sonho/realidade acompanham o personagem em seu passeio pela casa que tinha a sensação de “algo que lo había esperado, que había permanecido oculto, que necesitaba verlo en su soledad para darse a conocer por los destellos de una cal, antes fría, que ahora lucía todas sus lámparas como una mina de diamantes” (1997: 90). Nesse momento, Fronesis pode perceber que “Su cuerpo, al rechazar la mano de Galeb, al aceptar la mano de Foción en el sueño, al quedarse solo frente al espejo velado de las paredes de cal, se había convertido también en sobrenaturaleza” (1997: 90). Essa conversão dá-se, para Fronesis, pelo encadeamento metafórico que o assola momentaneamente.
Temos aqui, então, o que Lezama chamou “o súbito”: vivências radiais que unem metaforicamente os elementos mais díspares, convertendo elementos metafóricos em princípio não causais em um espaço gnóstico. Na sequência, Fronesis se dirige à pia do banheiro. Ao ver cair a água quente fecha a torneira. Seu resto: a nuvem de vapor e a lembrança do barulho da água se fixaram nele como imagem, pois o som da água, ao ser interrompido, mostrava o nascimento dos espirais, “el manto moluscoidal asumido por el sol sobre las colinas. La pila de agua tenía el humo y el sonido, bastaban esos personajes para el origen de los mundos” (1997: 90). Então a água quente, de fins utilitários, para Fronesis converte-se em nuvem (sugerida pelo vapor) que fazia a casa flutuar, voar, transformar-se em arca. Ele pensa: que fazer entre uma realidade, a mão rechaçada, e o inexistente, a mão aceita no sonho? De repente ele vê a casa entre duas nuvens “resbalada por una temporalidad inaudible” (1997: 91). Está ele e seu corpo na sobrenatureza, criada pela imagem proveniente da realidade/sonho. Está para ele a casa entre o telúrico e o estelar, entre a realidade e o inexistente. As cadeias metafóricas agiram e a conversão em imagem foi o que possibilitou, para Fronesis, que agora “Todas las casas eran una sola casa” (1997: 91), ou seja, tudo se conjuga no universo poético da imagem.
Da mesma maneira, no capítulo inicial temos a criação de um “espaço gnóstico” pela analogia das janelas. Delfina, uma moça que habitava a casa vizinha a Fronesis – uma casa de veraneio em Cuba onde o estudante passava parte do ano – vê através da janela de seu quarto, das persianas e das cortinas que clareiam/obscurecem a relação visual o corpo de seu amigo e vizinho. Fronesis está entre despir-se e deitar-se e, sua sombra, a figura que se forma em sua janela, é divisada por quem está na outra janela. Delfina ficava a contemplar, dissimulada, as ações de Fronesis, “su descanso no prolongado, su cigarro encendido, la colocación de su saco en el escaparate, el lento inclinarse del sillón ante la zapatera, la cortina intraspasable que descendía con rapidez” (1997: 13). Essa ação desperta a memória de todas as noites em que Delfina olhava seu amigo, fazendo se transformar quase em um ritual para ela perceber seu observado, decifrar a linguagem das janelas, ou, pelo que podemos suspeitar, estabelecer um espaço gnóstico, mesmo que totalmente alheio à ciência de seu objeto de desejo, Fronesis.
Delfina acaba por casar-se, mais tarde, com Palmiro, também vizinho da casa de veraneio. O recém-casado Palmiro vai instalar-se nas dependências da casa da esposa e começa a notar a janela, a via que unia o olhar do espectador às ações do contemplado. Em sua consciência desenvolvem-se, remontam-se as possíveis ações observacionais de sua noiva e ele parece compreender que havia entre a linguagem das cortinas que se fechavam ou abriam uma possível comunicação, ou mais ainda, a construção de um amor inscrito pela separação das casas de Delfina e Fronesis. Palmiro penetra, portanto, pela analogia metafórica no espaço construído por sua agora esposa, embora a interprete de maneira peculiar. Taciturno, senta-se no sofá do quarto e começa a reconstruir o possível apego que sua mulher-testemunha desenvolveria pelo ente observado. Assim, o quarto e costumes de Fronesis expandem-se pelas janelas ao quarto de Delfina e Palmiro, ficando esse último como quem liga os fios dessa rede tecida pela imagem, pois “veía el sillón frente a la ventana y a la ventana frente a la ventana de Ricardo, y la cortina que tironeada con brusquedad avanzaba sus pliegues, después descendía como si pusiera un sello sobre la ventana” (1997: 19). O caminho da janela levava a Ricardo Fronesis. Mas, se para Delfina agora casada a janela transformou-se em “la fuente del olvido en el inferno”, um “espejo maldito”, para Palmiro a via que o conectava a Fronesis era agora um labirinto: perdido em seus desvãos, poderia ele encontrar um outro Fronesis, fruto de um amor recalcado?
Palmiro enamora-se de Fronesis, ou seja, a concatenação janela-observadora-observado leva Palmiro a centrar-se não mais no ciúme de sua mulher, mas no de Fronesis, o qual se constitui, se transforma em um objeto de obsessão, e de quem Palmiro forma imagens que se cambiam, dependendo da visão que se tem do corpo do observado. A obsessão de Palmiro por Fronesis o leva, além de repudiar sua esposa a quem, apesar de toda sua suavidade e rendimento parecia a Palmiro “que la penetraba con los dientes” (1997: 25), também a se sentir menosprezado por Fronesis, pois desperta a lembrança de que o objeto de sua contemplação não o notava.
Janela que leva à contemplação, que obturou o espaço entre Palmiro e Delfina e que repentinamente transforma o enciumado em apaixonado pelo mesmo ocasionador dos ciúmes, ela leva também o amor a trocar-se em ódio. A não observação, o não sentir-se notado pelo agora objeto de seu amor faz com que Palmiro decida pela vingança contra aquele que negou seu amor. Vendo o que não era, o que só acontecia para si, pela projeção da luz e sombra de ambas as janelas, pela linguagem incondicionada que o levou a interpretar “la indiferencia de Fronesis como desdén”, decide-se Palmiro buscar na cozinha uma faca: queria perpetrar um crime passional contra Fronesis.
Obviamente que Ricardo Fronesis não imaginava o que estava acontecendo. A rede de ações encadeadas lhe é totalmente alheia, mas a imagem que se forma para Palmiro permite a este corporificar a negação em ódio, o ódio em vingança. Dessa forma, o olhar testemunhal cria uma outra realidade, e, buscando uma lógica distinta pode ocorrer em ações que impactarão decisivamente na economia da narrativa. Para a sorte de Fronesis, ele havia saído de casa na noite da tentativa de assassinato, ficando Palmiro com a tarefa de golpear os travesseiros da cama, dispostos que estavam para representar um corpo.
Para Severo Sarduy (1999: 165), é a metáfora a que cobre a substância ou resistência territorial do romance. O poema seria uma corpo retroativo, criado pela imagem final que chegaria às cadeias metafóricas; o romance, a cadeia em si: deslocações contíguas. A metáfora a que alude Lezama, “progresando por ramificación, imbricándose para formar el terreno que vendrá a habitar la imagen, se afianza a tal punto en su origen – la metonímia de los lingüistas – que parece confundirse con él. Hay asimismo el la imagen lezamesca una dimensión metafórica”.
Lezama Lima, em entrevista a Armando Bravo (1968: 33) disse, depois de ser abordado sobre a relação entre metáfora e imagem, que os mistérios da poesia e a relação que há entre o análogo “o fuerza conectiva de la metáfora”, que avança “creando lo que pudiéramos lIamar el territorio substantivo de la poesia”, pois, “con el final de este avance, a traves de infinitas analogías, hasta donde se encuentra la imagen, que tiene uma poderosa fuerza regresiva, capaz de cubrir esa substantividad.”
Dessa forma, e seguindo o próprio Lezama na sua entrevista, as conexões da metáfora “son progresivas e infinitas”, e a “substantividad poética” seria fixada pela agregação que a imagem sobre ela formaria. Assim, a imagem final, o que persiste, é engendrada pela teia conectiva metafórica, muitas vezes nada causal, no sentido aristotélico, pois, para exemplificar, que relações causais teriam em última análise Cidi Galeb, personagem homossexual, espécie de contraponto de Foción, e a Espanha, ou, em outras palavras, como a pesquisa filológica realizada por Fronesis, no primeiro capítulo de Oppiano Licario, quando se depara com o nome do país pode fazê-lo chegar a Galeb? De que forma o significante “Espanha” prevê, na mente de Fronesis, a imagem de Galeb, senão pelo “incondicionado poético” evocado a partir da decantação da palavra, quase automaticamente por Fronesis? Assim, quando Fronesis se encontra na enciclopédia com a letra ñ ele se depara com a palavra “Espanha”.
“En España (Hispania o Spania) hay un paño (panno), que cuando ciñe (cingit) con ñudos (nudos de nodos), daña (dagnat) porque araña (arana suat) y quita el sueño (somnos). Cuando Fronesis levantó los ojos para anotar esa frase, no pudo evitar el recuerdo de Cidi Galeb. La impresión que le había causado era indecisa sin relieve. Esa referencia filológica lo corporizó, pero volvió a desvanecerse al pasar la página del diccionario". (1997: 42)
Na concepção de Fronesis, o decantar da palavra sugere a danosa figura do príncipe bastardo de um dos últimos governantes árabes da Espanha. A palavra revela a imagem de Galeb tanto pela ascendência do mouro, quanto pelas sugestões sonoras nela imbricadas. Dessa forma, se voltarmos a Paradiso (2014: 496) encontraremos Cemí passando por igual processo de incondicionado poético sugerido pela palavra, pelo verbo que convertido em imagem, via teia metafórica, cobrindo a substantividade dessas “larvas de metáforas”. Cemí “acariciava” a palavra “Tamiela”, decompondo-a, pois “Fluía a cantoria das vogais e gozoso degustar do /e/. Tamiela, soava para ele como flauta, silencio, sábio, labial, pele. (...) Tamiela significa também reserva, celeiro, sótão, depósito, sedimento, tesouro, latrina, escritório, quarto, morada. (...)”.
Assim, se a palavra soava como flauta ou silêncio (sábio, labial, pele) também denotava a cadeia de significantes: reserva, celeiro, sótão, depósito, sedimento, tesouro, latrina, escritório, quarto, morada. Mais do que isso, a conotação se subdividia entre reserva (de caráter) e ser proprietário de prudência, de uma reserva “a donde dirigirse en caso de peligro”; celeiro e sótão se igualavam assim que alguém habitasse o celeiro, pois trazia o fruto das colheitas; depósito e sedimento, “se equiparaban tan pronto una ley oculta de gravitación fuera apisonando los objetos guardados por su semejanza, por su peso o su fundamentación oleaginosa, que los lleva a buscar el centro infernal de la tierra; tesoro y letrina, uniendo la energía solar y la excreta” (...), o lugar onde o mais valioso encontrava-se com o mais insignificante. O longo trecho do encontro verbal de Cemí, descrito por Lezama Lima (2014: 492), lembra que nele:
“O exercício da poesia, a busca verbal de finalidade desconhecida, iam desenvolvendo uma estranha percepção pelas palavras que adquirem um relevo animista nos agrupamentos espaciais (...). Quando sua visão lhe entregava uma palavra em qualquer relação que pudesse ter com a realidade, essa palavra parecia passar às suas mãos, e embora a palavra permanecesse invisível para ele, liberada da visão de onde partira, ia adquirindo uma roda onde girava incessantemente a modulação palpável, depois entre uma modelação intangível e uma modulação quase visível, pois parecia que chegava a tocar suas formas, fechando um pouco os olhos.”
O trecho evoca a descoberta permitida pelo súbito e incondicionado poético, pois para Lezama Lima, em suas Confluências (1996: 258) “As variações causais, de nexo muito recôndito ou profundo, só podem ser reunidas pela impulsão, pelo ar cinegético que impulsiona a uma finalidade, que elas mesmas esclarecem pela potência de seu percurso em movimento.” Dessa forma, a lógica metafórica evocada pelo aparecimento súbito de elementos a princípio díspares, se refaz na consciência de Cemí pela impulsão desencadeada por um incógnito, uma teia a princípio não causal, mas que é desvelada pelo poeta como algo “se adiantava, que desafiava seu chamado” (1996: 259).
Segundo Juan Gotysolo (1976: 160), Lezama Lima emula a realidade e a substitui como um corpo verbal, apropriando-se do mundo exterior mediante o mecanismo proliferante da metáfora. Por conta disso, podemos notar que a metaforização é um eixo condutor de possibilidades poéticas na prosa lezamiana, não mais mera figura retórica, mas caminho de pensamento e imaginação. Paradiso e Oppiano Licario, entre uma infinidade de outras coisas, metaforizam as relações entre entes os mais díspares, entre suas pretendidas funções sociais, ocasionando muitas vezes a criação da sobrenatureza pelo desvelo imagético que ocasionam.
Por último, Oppiano Licario pode também ser visto como um tratamento ficcional da tradição, ou seja, que o que se convencionou chamar tradição como um espaço institucionalizado ou rígido que lembraria um patrimônio intelectual e cultural muitas vezes é uma força movediça que nos integra em sua lógica, fazendo com que a escritura seja um convite à sua reescrita. O que nos faz lembrar as palavras de José Lezama Lima (2013: 26) recuperadas de um de seus ensaios, a saber:
Condenado el poeta a que su metáfora suprema sea la resurrección, es la gratitud y la exigencia, allí todo se nos regala y todo se nos quita. Perplejo, absorto, el poeta ha sido condenado a escribir la poesía y a recibir la rebelión de la palabra ante la escritura que la busca sin fijarla. Pero ese combate, quizá el que más haya justificado la existencia del hombre, siempre recomienza como una estación desconocida, pero imprescindible en su función de precisar la caída de las nubes en el río que las impulsa de nuevo.
Dessa forma, quando Ynaca Eco Licario entrega a José Cemí o livro escrito por Oppiano, chamado “Súmula, nunca infusa, de excepciones morfológicas” e ele o guarda em um baú, como quem guarda um tesouro, temos a metáfora do livro escrito transformando-se em livro por vir, pois o livro é destruído por um cachorro na noite do tufão. Cemí, desconsolado, olha as poucas páginas que sobraram, molhadas, borradas pela água, revelando paradoxalmente a escrita indecifrável, pois as letras não se mostram ao leitor. Parece compreender, e nós junto com ele, que a poesia da atualidade precisa ser feita, formada e que Oppiano Licario, o mestre poeta, tornar-se-á presente para a escrita de Cemí justamente por sua ausência, ausência que se presentifica pela imagem, força verbal que só ocorrerá quando Cemí justificar a poesia de Licario em seu próprio fazer poético, pois, para falar com Juan Goytisolo (1976: 159), a busca de Cemí “es la búsqueda del código secreto que orienta sus pasos hacia su nacimiento como escritor”. Infelizmente o livro acaba sem terminar, o que não poderia ser menos simbólico quando parece nos dizer que nem tudo foi feito e evocando, decisivamente, a frase final de Oppiano Licario que retumba nos ouvidos de Cemí no final de Paradiso: “Podemos começar?”
Referências:
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Lima, J. L. (2000). La possibilidad infinita: archivo de José Lezama Lima. Madrid, Editorial Verbum.
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