A fonte obtusa
Aparentemente, o que se tinha para dizer de importante sobre O enigma das ondas, novo livro de poemas de Rodrigo Garcia Lopes, já foi dito em intervenções notáveis, como a de Jardel Dias Cavalcanti e Ronald Polito ainda em setembro do ano passado. Tudo que se diga agora já seria secundário, marginal, mas, em termos substantivos, é mesmo esse lugar – o marginal – que fundamenta estas considerações, o ponto de onde percebo o objeto em questão. Trata-se de livro implicado no centro do processo histórico ainda em ebulição, e por isso a sensação que desperta: é muito fácil dizer o óbvio sobre isso, sobre um livro que aborda o presente imediato. O mais relevante é tentar compreender o lado obtuso desse óbvio, para recordar a célebre provocação barthesiana, localizar, afinal, a fonte de sua força enigmática em termos hermenêuticos, de uma interpretação do processo de criação.
A reação aos dias pandêmicos constitui a superfície óbvia da coletânea, mas o modo como essa reação se dá não é óbvio porque não é reativo, autocomplacente, resiste a simplificações supostamente poéticas. Não se trata de exibir as virtudes elevadas de um eu romantizado em face de uma matéria histórica miserável. Embora intenções estéticas permeiem os poemas, não é o ideal de beleza, por exemplo, que move O enigma das ondas, mas o ideal de dizer uma experiência de verdade interior bastante incômoda. O ideal se mostra imbricado num real que o contorce, que o rasura, a ponto de desestabiliza-lo. A fatura estética acaba por se configurar como uma espécie de fratura ética, desvelando-se um sujeito em situação de conflito com o mundo comum, circundante, no qual se confundem materialidades e virtualidades. Nisso, na fatura-fratura, consiste precisamente o dado obtuso, curvo, rudo, dos poemas.
O livro se performa como uma cartografia romana, desviando-nos em direção ao passado, com seus espaços-seções denominados “lingua”, “pandemonium”, “loci” e “mentis”, disposição que nos sugere a ativação, por parte do autor, do baudelairiano desejo de ser lido como poeta da Antiguidade clássica. Passeamos pela Grécia mítica, pela Provença de Arnaut Daniel e pela Gália dos Trovadores portugueses dos séculos XII e XIII. Também viajamos pela Inglaterra do século XVII de Milton e tantos outros lugares “esteticizados”. Tais referências acentuam a potência anacronizante da obra, aspecto que a imagem recorrente do mar solidifica. Nessas referências, encontramos um arcabouço literário, elementos de uma “Bildung”, de uma formação, que distinguem o poeta na república das letras, como pensa em termos genéricos Susan Sontag no seu Questão de ênfase, desde seus primeiros passos ainda no final dos anos 1980.
Os poemas de Lopes intentam, como queria Eliot, escrever “com” grandes poemas da tradição ocidental estabelecida, canonizada, bem como daquela que o próprio poeta “inventa” com seu intempestivo afã nietzscheano. Ouvimos ecos de Homero, de Camões, de Dante, de Villon, de Withman, de Pound, de Celan, de Rimbaud, de Corbière, por toda parte, bem como uivos de Ginsberg, Kerouac e Burroughs, além de estalidos de Leminski, de Torquato, de Waly, Piva e ainda intensidades, proliferações, do primeiro Haroldo de Campos e de Mário Faustino. Todavia, o mar, donde se desdobra a cena de percepção estruturante da coletânea, é um caso de cultura no sentido originário de “colo”, de ocupação, que induz um mais aquém e além da cultura, uma “physis”, uma natureza. O fato de que se trata de um mar culturalizado, de uma “realidade sígnica”, como diria Haroldo de Campos, não tira do mar um valor ascendente na dinâmica anacronizante, despresentificante, que encontramos em O enigma das ondas.
Somos lançados ao mar desde o primeiro poema, “Aéreo reverso”, premidos a nos envolver num processo de navegação por camadas semânticas muito instáveis, nas quais o referente é a própria movência, um objeto que resiste à fixação, que não se deixa controlar pelo sujeito. A estratégia épica de que se vale o poeta desde o seu primeiro livro, o dado prosaico em tensão com o poético destacado por Cavalcanti e Polito, é exemplo do seu esforço de acercamento desse objeto como uma espécie de princípio irônico de criação, sutil corrosão de expectativas convencionais em face da poesia. Assim, lá em Solarium, livro de estreia em 1994, num poema que já se inicia no título-verso “Circunavegando a grande esfera desvairada”, lemos: “e cativo | El Capitán Mergulho | numa cilada de gozos ! entre espumas | escunas | dunas & lunas | vai no rastro do carinho alucinado e lindo | femenino e quente como um deus | Entre girassóis marinhos | areias cambiantes | sereias | conchas de fogo nos cabelos | ele sumindo”.
Essa prosa espraiada, desfigurada, como que lançada sobre a superfície, na qual a espacialização tem valor semântico estruturante, “desenha” uma resposta irônica ao veredicto adorniano sobre a impossibilidade de se escrever poesia depois de Auschwitz, do eclipse da ideia de humano. O enigma das ondas se abre com “Aéreo reverso” narrando: “A palavra surfista desce a onda verso, | ganha velocidade na linha | então | retorna e a | Rasga, num cutback, | e num S perfeito escala | até a espuma: | seus pés pressionam a prancha | a prancha | na batida | a quilha desliza | pelos metros de cristas | Outra cavada forte em sua base | e parte para cima, faz um leque e gira | sobre si, desenha na parede | outra curva rápida-elegante | Agora | um mundo branco se desmorona lentamente | às suas costas | (as sílabas ficam invisíveis enquanto atravessam o tubo) | Só mais alguns segundos | para o fim da bateria | A palavra surfista ressurge do spray da casa de vidro | rasga a muralha esmeralda | em uma | manobra clássica | corta pra dentro | Uma vez mais | atinge o lábio da onda | e voa”.
Esses dois poemas são paradigmáticos de uma operação da famigerada situação de crise da poesia moderna que se caracteriza por um viés descritivo, que constitui o núcleo da narratividade, em franca oposição a um viés prescritivo, impositivo. As ações praticadas pelos sujeitos marítimos, digamos, o capitão e o surfista, dispõem-se perante os nossos olhos como movimentos naturais, arbitrários, que erigem um objeto obtuso. Dir-se-ia que não que há outra finalidade nessas ações senão a configuração desse objeto que contradiz o óbvio, que não se quer como poesia no sentido da tradição lírica. Mas, por outro lado, o gesto do paranaense está longe de se configurar como antilírico, como cabralino, sobretudo porque sua questão central não é a razão do poema, mas antes a percepção do poema. Não se trata de racionalizar o poema, mas de perceber a partir do poema o que está se passando no mundo, processo no qual a palavra é um dispositivo de atravessamento.
O dado arriscado em O enigma das ondas, ao qual Silviano Santiago foi sensível na sua Apresentação do livro, diz respeito precisamente a esse estatuto ostensivamente operacional da palavra, que a reveste de uma consciência de si espontânea, com ares de naturalidade, a despeito de quaisquer substâncias obscuras. O poema “Janelas para o mundo”, que tem a epígrafe do poeta polonês Zbigniew Herbert “The word is a window onto reality” (a palavra é uma janela para o mundo), diz: “O mundo passa | pela janela da palavra | para tocar a realidade | mas a realidade | de repente se fecha | na imagem de uma concha: | uma concha | é um mundo onde | coube uma palavra. | Isto nos basta: | fechamos as palavras das janelas | e abrimos as janelas das palavras.” Está aqui certamente o núcleo da complexidade da poética de Lopes em termos pensantes, no qual perspectivas diversas se tocam sutilmente (Mallarmé, Valéry, Wittgenstein, Creeley) e culminam numa natural dimensão enigmática.
Os vários poemas longos que permeiam O enigma das ondas evidenciam o quão a realidade é misteriosa, sua natureza de concha, de objeto fechado em si mesmo, resistente à expressão reta, classicizante, lógica, transparente. No primeiro desses poemas, “Pós-verdade”, o poeta chega assim a um dos temas centrais deste século: “Manhã de chuva, carrancuda | como um general russo”. Noutro, denominado “Autópsia”, o diagnóstico sobre o corpo conceitual acusa: “Não existe mais eu, nem outro, | No lugar onde estava o Autor | um discurso sem vida, neutro, | uma ausência singular, meu amor, | este zumbi chamado Eutro.” Em “Pandora”, arriscando operacionalizar a realidade com a palavra de modo ainda mais estridente, o poeta enumera definições que acabam por configurar o poema como caixa de ressonâncias: “É uma vida pulsando entre a pedra e a espada, | é o prenúncio de uma economia global robotizada, | São velórios e shoppings vazios, praias desertas, | é o começo de um renascimento, é o fim de uma era. | É o silêncio ensurdecedor e o medo de morrer”.
Pode-se caracterizar o modo arriscado de se produzir o poético n´O enigma das ondas como um procedimento derivado de uma impossibilidade de dizer o eu, o interior, sem dizer o outro, o exterior, donde decorre uma perturbação da aura pela ágora, para lembrar uma arguta problematização da lírica por Homi Bhabha. Essa situação me parece evidente em poemas como “Mendigos”, “Selvageria”, “Últimas notícias” e “Simultaneidades”, todos longos, transbordantes, exibindo um desejo obsessivo de apreensão do todo experienciado, de operacionalização da realidade social com a palavra, que, no limite, funde o poético e o político, o privado e o público. Nesses trabalhos e nos demais citados anteriormente desvela-se a razão conflituosa do fazer estético nesta coletânea que tem seu fundamento numa espécie de fratura ética, conforme mencionado, decorrente da condição de poeta no mundo neoliberal, estruturado por relações cínicas, superficiais. Condição desamparada, confrontada por incompreensões de todo tipo, que vem de longe, é certo, mas que atinge dimensão absurda neste século.
O poema “O enigma das ondas”, com o qual o livro se fecha, dispõe centelhas epistemológicas fundamentais para a compreensão não só da coletânea, mas da obra poética de Rodrigo Garcia Lopes, que conta com livros como Visibilia, Polivox e Nômada, entre outros. Uma dessas centelhas é o “élan” sinestésico, digamos, a mesclagem de sentidos, o que evidencia um desvio de horizonte perceptivo que possibilita, em sintonia com o Simbolismo, uma enunciação multívoca do visível que naturalmente agita dimensões invisíveis. O sujeito interroga: “Que língua falam as ondas? | Talvez, no fundo, nos sondem. | As ondas falam das ondas | Em seu efêmero quando.” Saber que língua as ondas falam não é tão relevante quanto o conteúdo da fala das ondas, o objeto dessa fala, que são as próprias ondas. O horizonte perceptivo resvala de uma instância sujeito-objeto para uma instância objeto-objeto, distanciando-se de uma relação de sentido óbvia para uma relação bastante obtusa, atravessada pelo nonsense.
Posicionado diante do mar, o poeta agencia uma ausculta das ondas que desvela, de modo espontâneo, uma perspectiva da natureza que se contrapõe às perspectivas da cultura pela via do intempestivo: “Que diz a onda ciano no instante | de ser brilho de vidro estilhaçante, | ferindo ferozes os rochedos, virando | recifes de sangue, flores de medo?” A perspectiva da natureza é a do ato, e este se configura em termos brutais, virulentos, como um movimento que instiga a percepção. O poema consiste, primeiramente, na elevação dessa percepção à condição de problema e, depois, no desentranhamento de uma historicidade desse problema. Essa historicidade, por sua vez, contém duas dimensões básicas extremas, uma histórica e outra estética, que se aproximam, complicam-se e se dissolvem numa terceira dimensão humanista, coletiva, um “nós” que se afirma como um horizonte compreensivo, ideal.
Tensionando a pergunta sobre o teor da fala das ondas, o poema, que contém 21 estrofes de quatro versos heterométricos, eleva a percepção à condição de problema precisamente na 6ª estrofe: “Falam de sonhos, impérios, naufrágios | Distâncias, desterros, destinos, do vento | Falam em frases frágeis cujos sentidos | se desfazem no litoral do pensamento”. O que se percebe é um problema se configurando à medida que é investido de matéria histórica, na qual a própria linguagem está implicada, de tal modo que perceber o mar exige o ultrapassamento do visível em prol do audível, uma ausculta do que se apresenta à visão: “Que língua rugem as ondas | quando estão se quebrando? | Que fábulas, histórias e lendas | Carregam em tantos estrondos?”, lemos na 13ª estrofe, uma aproximação das dimensões histórica e estética, o convulso e o articulado, a totalidade e a particularização. A complicação dessas dimensões se processa em clave especulativa ao longo de mais seis estrofes.
Ao final do poema, não encontramos a solução do enigma, mas um índice expressivo sobre a razão da sua indissolubilidade, para evocar uma vez mais Adorno, quando, em sua Teoria estética, reconhece no enigma uma particularidade da obra de arte moderna. Esse índice é precisamente a cisão entre o humano e a natureza, tema romântico por excelência, que é contornado pelo poema como parte da estratégia despresentificante, anacronizante, de que o poeta lança mão. Lemos na penúltima estrofe: “Sei que as ondas nos escutam (falando, | sozinhos nas praias, cegos a seus acenos) | há milhares e milhares de anos | com uma paciência que não temos.” Acentua-se desse modo o paradoxal abandono na condição humana, um desamparo que encontra consolo numa certeza ideal que deseja ser real. Certeza que se repete na última estrofe: “Sei que sob a lua, exaustas, confessam, | quando recuam, mudas, em poças, | e cumprem sua líquida promessa: | A língua que falam é a nossa”. Sim, a incompreendida.
Referências
Adorno, T. (2008). Teoria estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa, Edições 70.
Bhabha, H. (2012). O bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses. Organização de Eduardo T. Coutinho; Tradução de Rita T. Schmidt. Rio de Janeiro, Rocco.
Cavalcanti, J. D. e Polito, R. (2020). Partilha do enigma: poesia de Rodrigo Garcia Lopes. In https://www.digestivocultural.com Acesso: 06.11.21.
Lopes, R. G. (1994). Solarium. São Paulo, Iluminuras.
Lopes, R. G. (1996). Visibilia. São Paulo, Iluminuras.
Lopes, R. G (2001). Polivox: 1997-2001. Rio de Janeiro, Azougue.
Lopes, R. G. (2006). Nômada. Rio de Janeiro, Lamparina.
Lopes, R. G. (2020). O enigma das ondas. São Paulo, Iluminuras.
Sontag, S. (2001). Questão de ênfase. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo, Companhia das Letras.
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