Ângela Faria
João com os amigos da rádio Inconfidência. Crédito: Arquivo Família JPC.
João Paulo – filósofo desde sempre – já sabia que a morte é certa muito antes do diagnóstico do câncer chegar, no início deste 2022. Sabia, mesmo. Morte, para ele, nunca foi metáfora. Dizia-se ateu, mas adorava a Bíblia e o ritual da missa. Quando Bernadete, sua irmã, foi à Grécia, a única coisa que pediu foi uma Bíblia. Em grego. Viver sempre foi descuido prosseguido para o João. Em nossas “lives” – telefonemas pandêmicos que se tornaram mais frequentes durante o tratamento –, ele gostava, mesmo, é de falar da vida. Das fofocas, de livros, do imenso desafio que o Lula teria pela frente, da neta Antônia, além dos três vira-latas que tinha em casa – Marx (claro), Buda e Pagu. Nunca nos alongávamos muito sobre perrengues, sintomas e consultas. Ele queria saber das novidades. Fiquei feliz quando me disse que voltara a ler, hábito de uma vida. Havia parado durante certa fase do tratamento. E o João sem livro na mão... Isto, sim, era preocupante. Pois ele me falou, na lata, que decidira aproveitar o pouco tempo que lhe restava fazendo o que gosta: ler. E me recomendou “O diálogo possível”, que Francisco Bosco lançou este ano.
João acreditava que esse livro joga alguma luz sobre o momento atual da política brasileira. Para ele, Bolsonaro nunca foi ponto fora da curva, mas a materialização da direita camuflada, sempre presente no DNA nacional. Me lembro até hoje da cara preocupada dele, sobretudo em duas ocasiões: quando as jornadas de junho tomaram as ruas, em 2003, e quando o golpe tirou o mandato de Dilma Rousseff. “Vamos precisar de muitos anos para consertar o estrago”, lamentou. Não deu outra. O livro de Francisco Bosco, me disse, traz importantes reflexões sobre as redes sociais e o novo espaço público configurado sob a forte influência delas. Espaço público, aliás, em que o jornalismo vem, cada vez mais, perdendo relevância, se comparado à época em que éramos jovens, o tempo das diretas já, da redemocratização. A era das fake news ameaça seriamente a democracia, preocupava-se o João. Outra recomendação foi a série “Sintonia”, da Netflix, sobre a periferia brasileira. Ele me disse, encantado, que aprendia muito a cada episódio sobre o imaginário popular brasileiro neste século 21. Tráfico, evangélicos, favela, jovens, o vigor cultural do funk, milícias – tudo está ali sob o “olhar de dentro”, comentou. Ou seja, do produtor Kondzilla, Guilherme Moraes Quintella e Felipe Braga. Entusiasmado, dizia que em alguns momentos mal entendia o que os personagens diziam, pois a palavra, o verbo era outro. Teve, por assim dizer, de sair da tal zona de conforto. Viu em “Sintonia” conexões que passam ao largo da academia, de intelectuais e da esquerda da qual ele próprio fez parte a vida inteira. Outra paixão: “Que tal um samba?”, música que Chico Buarque lançou este ano. Decorou a letra, ouvia a canção o tempo todo, me contou a Cibele Malafaia, sua mulher. Foi o mantra que o ajudou a encarar a dor filha da puta – a dele e, sobretudo, a de ver o Brasil desse jeito. João se foi, deixando pra gente a missão de juntar os cacos, ir à luta, desmantelar a força bruta e remediar o estrago – seja qual for o resultado das urnas em 30 de outubro.
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