Foto: arquivo da autora
a rainha da noite é negra
a lua apesar de branca
não pode brilhar sem o negro
da noite ampla
e as estrelas…
o negro realça o brilhar
dos astros
e imenso
a negritude própria
de todo nascimento
*
“quantos mais vão precisar morrer
para que esta guerra acabe?
eles têm a cor da luta na pele
eles têm a vida nas mãos
eles têm o mundo nos pés
e são alvo do teu ódio insano
quantos mais vão precisar morrer
para que este ódio acabe?
eles têm no corpo um coração
eles têm família e união
eles amam e amados são
eles são negros / eles são miscigenados
e a tua incompetência só tem ignorância
e indiferença
a tua paz é a guerra
quantos mais vão precisar morrer
para que este tempo sombrio acabe?
no qual a injustiça passeia pelas ruas
uniformizada armada e mata
quem tem a cor da luta na pele
quem tem a vida nas mãos
quem tem o mundo nos pés
mata os jovens negros e quase negros
mata os jovens pobres e negros e quase negros
eles são humanos e mais humanos
e são alvo do teu ódio desumano e cotidiano
cada vez mais ódio
cada vez mais desumano
cada vez mais cotidiano
eles têm a cor da luta na pele
a cor do sol / a cor do ébano
eles têm a vida nas mãos
e o mundo nos pés
e são alvo do teu ódio
enfatizado / estatizado / amparado
por leis racistas
descumprindo a lei
quando ela não é racista
mas a vida se importa
“a vida destes jovens negros
importa” / a vida se incomoda
porque a vida precisa deles
que tem a cor da luta na pele
que tem a vida nas mãos
que tem o mundo nos pés
que tem coração
a vida precisa muito deles
a vida precisa da vida
destes jovens negros e quase negros e pobres
do teu ódio não
da tua fatal incompetência não
da tua mortífera ignorância não
NÃO NÃO e NÃO
a vida precisa
que estes jovens negros
vivam / salvos
VIVAM e VIVAM
e SÃOS
17.08.2019
*
a alma não tem cor se cor tivesse a alma a veríamos quando abre devagar as asas antes de alçar o voo para o alto
a pigmentação da pele é apenas uma questão de luz daqueles que são muito iluminados daqueles que são pouco iluminados
a pigmentação da pele
é apenas uma questão de sol
a alma não tem cor
a pigmentação da pele da alma
é a luz
31/5/20
imagem e semelhança
eu vi o grande homem parado na praça da igreja
de terno e gravata e na mão aberta a bíblia
gesticulava o braço apontava com o dedo
gerava medo falava ininterrupto
palavras santas e acusadoras
culpava pecadores e inocentes
e revelava a nascente
de todo mau do mundo
sua voz alta, tom forte e profundo
choviam gotas de saliva
palavras defensivas e ofensivas
e o dedo infalível apontava
para as pessoas que passavam
para o trabalho e os vagabundos
eu vi o grande homem parado na praça da igreja
de terno e gravata e a bíblia aberta na mão
gesticulava, apontava com o dedo
e a roda humana à volta
olhava submissa credo ou desprezo
e Deus era um homem ali do lado
sem uma perna e sem um braço
em cima da tábua com quatro rodinhas rolemãs
pedindo passagem distanciando-se do dilema
eu vi o grande homem parado na praça da igreja
de terno e gravata e a bíblia aberta na mão
gesticulava apontava com o dedo
e Deus não entendeu a aglomeração
as palavras que não tinha dito
as palavras que não tinha escrito
e afastou-se sem ninguém perceber
a sua cotidiana aparição
*
o ser humano permite que seres humanos
se afoguem no mar mediterrâneo
que morram despedaçados por bombas
ou baleados ou de fome doença de desemprego...
preconceito... racismo… desespero...
e o ser humano cria ávido - robôs
que devem ser iguais os seres humanos
que devem pensar e amar
iguais os seres humanos
e trabalhar iguais os seres humanos
robôs para se relacionarem
com os seres humanos
robôs para entreterem
os seres humanos
enquanto isso os seres humanos
são assassinados por seres humanos
morrem afogados no mar mediterrâneo
morrem de fome de desemprego de racismo
morrem de guerra de catástrofes climáticas...
morrem de doença
... ... ...
morrem de falta
de ser humano
e
de tão humanos os robôs
morrerão assassinados por outros robôs
se afogarão no mediterrâneo
morrerão de fome de injustiça de guerra
de doença de preocupação...
...de preconceito de racismo de desespero…
de falta de ser humano
02/11/19
*
eu tenho um filho que brincava com bolinhas madrepérolas
no chão de ladrilhos vermelhos do quintal
e martelava prego no caixote para fazer um carrinho
e corria pelas ruas da redondeza era amigo
dos cães sem donos mas afugentava os passarinhos
subia em árvores andava descalço e comia sem lavar
as mãos pronto para sair correndo dar rodopio no vento
assobiar para os cães molhar-se na chuva
o meu filho cresceu e tem um filho
que não brinca com bolinhas madrepérolas
nem martela caixote nem corre pelas ruas
não assobia para os cães sem donos
não afugenta passarinhos quando chove ele abre
o guarda-chuva não conversa com as árvores
não tem árvores nem quintal e ele passa
horas olhando para uma tela eletrônica
no seu mundo virtual
2017
*
oito minutos e quarenta e dois segundos e ele ajoelhado não rezava matava com as mãos nos bolsos o olhar frio e maligno esmagava o pescoço de um ser humano negro deitado, algemado sem nenhuma resistência tirava sua existência com as mãos nos bolsos tranquilo e seguro talvez apenas em sete minutos e sete segundos e a alma já tivesse se despedido a do homem negro no chão a do homem branco não porque alma nenhuma ele tem que possa se despedir ao morrer será apenas um corpo branco podre, fétido em decomposição
31/5/20
*
coloque uma poça de mar e altos arvoredos
coloque mata e ruas de terra ou paralelepipedos
coloque o som de uma música na rádio
as rodas macias de uma viagem
a campainha da casa de seus pais
coloque diálogos arquitetura e sapatos
que não apertam relógios que não assustam
pedaços de desapego em um vasilhame fechado
coloque pensamentos e anzóis
acrescente novos pensamentos
espere as lembranças crescerem
coloque os movimentos dos rios
e lâmpadas acesas guarde o número do telefone
porque em algum momento
ouvir aquela voz será profundo anseio
coloque um mínimo de multidão
coloque os livros para o tempo
em que o tempo incorpora a lição
coloque as passagens no instante de precisar
resgatar as experiências
coloque uma despedida breve e banal
e fortes regressos para fora ou dentro de ti
e vá!
2017
os esqueletos das ondas
inertes sobre a areia crepuscular
brilhavam como o nascer das coisas
como a beleza do frágil e do sagrado
e dourados como riquezas
simples e gratuitas
viviam como se fossem as próprias ondas
e as ondas sei lá!
algo como um corpo impalpável e inquieto
pertencente a outro mar.
Maravilhosamente vem essas verdades na mente que todos nos sabemos, como um golpe que fere e e um outro que cura. Parabéns pelos bem escritos momentos.