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Lições de resistência: artigos de Luiz Gama em coletânea organizada por Lígia Fonseca Ferreira

Renata Ribeiro Francisco




A coletânea Lições de Resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro reúne 61 artigos jornalísticos publicados pelo escritor Luiz Gama em periódicos republicanos e abolicionistas. Baiano de Salvador, nascido em 1830, Gama era um homem negro nascido livre cuja liberdade lhe fora suprimida aos dez anos pelo próprio pai, que o vendera como escravo para quitar dívidas de jogo. Na condição de escravizado chegou a São Paulo; ali, conseguiu encontrar provas irrefutáveis de sua liberdade e fugiu do cativeiro. Tempos depois, imprimia sua grandeza em seus escritos e em suas práticas antiescravistas.

O livro organizado pela pesquisadora e professora Ligia Fonseca Ferreira abrange o intervalo de 1864 a 1882 da produção jornalística de Luiz Gama, contemplando os primeiros e os últimos escritos do abolicionista, daí residindo sua importância. A autora nesse estudo encontra na construção narrativa um caminho para aproximar o leitor ao universo literário do abolicionista. Conforme sublinha Wlamira Albuquerque, em sua resenha sobre a coletânea Resistência, intitulada O posto de honra de Luiz Gama, Ferreira desenvolve uma metodologia própria dando a devida relevância à cronologia de publicação dos textos com a intenção de ressaltar as estratégias narrativas e de ação para as lutas antiescravistas promovidas por Luiz Gama.


Conduzido tardiamente ao universo da literatura, Gama era autodidata e desfilava domínio pleno das letras com erudição absoluta. Especialista em jurisprudência, com autorização especial da Justiça, pôde exercer o ofício na condição de advogado provisionado. Seus conhecimentos jurídicos definiram a liberdade de muitos homens ilegalmente escravizados. Dizia: “São livres! Repetiremos perante o país inteiro, enquanto a peita e a degradação impunemente ousarem afirmar o contrário”.


Sem acesso à educação formal, Luiz Gama foi iniciado nas primeiras letras aos dezessete anos pelas mãos de um estudante de direito compadecido com a história. O letramento na segunda metade do século 19 era privilégio de poucos. Apesar disso, ele conseguiu romper os efeitos deletérios da escravidão, integrando-se ao mundo das letras. Em 1859, o jornalista publicava o primeiro trabalho de fôlego, o livro de poemas As primeiras trovas burlescas, esgotado e reeditado em 1861. Nele, Gama debateu temas sociais, românticos e de cunho racial, enquanto seguia padrões da escrita erudita, alinhando seu estilo à produção literária corrente entre os bacharéis. Sua produção textual seguia a tradição literária da época, delineada pela interpenetração de gêneros distintos definidos pelo encontro do jornalismo com a literatura e a política. Seus textos precisos, longos, recheados de termos ácidos, que saltavam da sua pena a fim de fazer galhofas com figuras públicas corruptas e “salteadores da liberdade”, eram baseados na sátira, gênero que criticava costumes, instituições e ideias por meio da ironia e da ridicularização de cenas cotidianas. Também fazia alusões à mitologia grega e arquétipos em seus poemas satíricos e escritos jornalísticos.


Os artigos mergulham nas cenas políticas e sociais da época, registrando o processo de erosão e esfacelamento de suas instituições que sustentavam o Império: a escravidão e a monarquia. Gama repercutiu os efeitos deletérios da Guerra do Paraguai (1864-1870) sobre a vida dos escravizados, transformados, do dia para a noite, em soldados, lançados à própria sorte no front à espera de liberdade futura. O conflito foi alimentado por falsas esperanças dos abolicionistas de primeiras águas que miravam no impacto maior de outra batalha na América, a Guerra Civil (1861-1865) norte-americana, que levou ao fim da escravidão nos Estados Unidos.


Com o recuo do debate abolicionista no Parlamento, Gama nutria os jornais com notícias voltadas às ações de liberdade e desafiava a ordem escravista estampando na imprensa as conquistas jurídicas em ações pela alforria dos escravizados, despertando a fúria dos senhores. Resoluto, elevava o tom crítico em resposta às ameaças de autoridades públicas ou de escravagistas. Enquanto isso, jornais espalhavam por todos os cantos da província de São Paulo notícias sobre a atividade jurídica de Gama. Pequenas notas eram publicadas pelo jornalista anunciando os serviços: “Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados”.


Apoiado por ampla rede de colaboradores, Luiz Gama resguardava-se das ameaças e calúnias auferidas. Nos bastidores dos jornais, teve apoio de seus correligionários republicanos e dos abolicionistas negros Ferreira de Menezes e José do Patrocínio, com quem construiu amizades sólidas.


Em um cenário de crises, outras tensões surgiram no horizonte do Império que levaram a rupturas políticas. Liberais e conservadores esgarçavam o pacto de equilíbrio e de alternância no poder, abrindo caminhos aos liberais dissidentes. Encabeçado por Gama e outros personagens de proa da cena política, o Club Radical Paulistano se transformou no Club Republicano, que formou o Partido Republicano, que lutava contra o regime monárquico e recompunha o debate antiescravista. A esse tempo, a Guerra do Paraguai tinha ficado no passado e a Lei do Ventre Livre de 1871, que garantiu a liberdade para filhos de escravizadas, revelava sua ineficácia. A reboque, fermentavam cenas de fugas individuais e coletivas e revoltas escravas. Gama não viveu para ver a abolição e o fim do regime monárquico, pois teve a vida ceifada pelo diabetes em 1882.


Textos dispersos, documentos malconservados e arquivos fechados dificultaram o acesso à obra do autor, situação que foi contornada depois dos anos 2000 com a adequação dos arquivos. As condições materiais por si sós não justificam a omissão histórica em relação à sua obra. Outros fatores contribuíram para esse cenário, como o projeto de branqueamento engendrado pelo Estado na virada do século 10 para o 20 e a política sistemática de apagamento histórico da intelectualidade negra.


Sob o crivo do ativismo negro, a história-memória de Luiz Gama e de outros personagens foi resguardada à força do tempo, abraçada depois pela historiografia revisionista de 1980, que se dedicou à história dos vencidos, redesenhada por novas fontes que abriram caminhos para um novo fazer histórico.

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