por Maria Inês de Almeida
Em texto baseado em depoimento ao Suplemento Literário de Minas Gerais em 2008, numa homenagem a Guimarães Rosa, a escritora e pesquisadora, pioneira nos estudos sobre literatura indígena no Brasil, reflete sobre língua, tradução e mistério.
Uma tristeza, esse começar de onde. Lugar nenhum para o que sabíamos de coração que estava sempre por vir. Os idiomas perdidos. Desde o início da jornada com eles a gente pressentia que o caminho era difícil de encontrar, quanto mais o que se procurava.
E nada tinha sido proposto claramente. O que estava visível, apenas, umas caras ainda sem expressão (cem paisagens?), e frases que ouvíamos como clichês ditados pelos chefes: vamos recuperar nossa língua perdida, vamos resgatar nossa cultura, vamos ensinar nossas crianças, vamos escutar os mais velhos, vamos isso, vamos aquilo. E tanta fraca promessa. Ninguém no Poder, afinal, responderia por elas. Não tinha sido sempre assim? Os índios nem existiam! Então aqueles rapazes e moças dos Pataxó, dos Xacriabá, dos Krenak, dos Maxakali, que buscavam os doutores da universidade para saberem mais de onde vieram e como seriam suas línguas, pareciam fantasmas dos que haviam tombado em antigos combates, cujas marcas se encontram em placas com nomes de ruas no centro de Belo Horizonte.
Contudo, topamos caminhar com eles, procurar o quê? E até que começamos a entender: ave, palavra. Teríamos que escutar. Mesmo que estivessem apenas escritas em algum antigo alfarrábio, em arquivos das cidades e vilas, ou ainda audíveis em conversas de velhos e pajés, em cantigas quase sumidas, em rezas incompreensíveis. Toda língua são rastros de velho mistério.
Escutar, pois. Não é assim que se faz a história e a literatura de todo lugar?
E, finalmente entendi que aqueles índios me pediam para ajudá-los na grafia de suas literaturas. O caminho que encontramos. Um método de ouvir e copiar, até que o escrito pudesse ser lido, quando a todos fosse dado o direito de ler para além do significado.
O sentido pode ser e não ser.
Aí chegamos a Guimarães Rosa.
Quando entramos a caminhar ao lado dos ditos índios, numa espécie de arqueologia, onde procurar suas línguas esquecidas à força? Em pedras do Peruaçu? Em alguma velha reza? Em lugar nenhum, mas vinda em sonho de algum adoecido? Em algum cartório por descuido? Em anotações de algum explorador?
Nisto, encontramos dois textos que logo se colocaram como pista de um possível liame entre os traços, no que costumamos chamar literatura brasileira e no que começamos a chamar literatura indígena: “Meu tio o Iauaretê” e “Uns índios (sua fala)”. Ambos, provavelmente, iniciados em 1952, quando Guimarães Rosa esteve viajando pelo sertão, passando por Mato Grosso, ouvindo e anotando. Nesta viagem, ele deve ter encontrado, além dos Terena, outros índios que não passavam na ocasião de caboclos. Descendo o São Francisco, a partir de Januária, os sertanejos já têm histórias e linguagem dos Xacriabá.
Possíveis restos, litters, resíduos, imagens sinestésicas deixadas no trânsito entre os mundos. E de que mundos falamos? Cruzamentos de paisagens diversas, esboroadas, em desaparecimento: a mata fechada, o rio doce, o cerrado, a caatiguinha, e os trás-os-montes, o tejo-rio...
São João das Missões: norte de Minas, entre Manga e Itacarambi. Aí fica a reserva indígena Xacriabá. Dizem deles que são a confluência de vários povos, inclusive africanos e ibéricos, e que originariamente haveria predominância em suas linguagens de uma língua da família Jê (da família Akuen). Nada se sabe ao certo. Ninguém sabe o que é um homem. Mas o fato é que, quando Guimarães por ali andou, em sua famosa viagem com os boiadeiros, não se reconhecia a presença de índios, pelo menos oficialmente. A Terra Indígena Xacriabá, embora território “doado” pela Coroa Portuguesa desde o século XVIII, só foi homologada após a expulsão dos últimos posseiros, a partir do massacre de 1987. Antes, era até perigoso alguém se dizer índio naquela região.
“Há, assim, três coisas que metem medo.
A primeira é a mutação. Ninguém sabe o que é um homem. Os limites da espécie humana não são consequentemente conhecidos. Podem, no entanto, ser sentidos. O mutante é o fora-de-série, que traz a série consigo. (...)
A segunda é a Tradição, segundo o espírito que muda onde sopra.
(...)
A terceira é um corp’a’screver. Só os que passam por lá, sabem o que isso é. E que isso justamente a ninguém interessa.
O falar e negociar o produzir e explorar constroem, com efeito, os acontecimentos do Poder. O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que, aqui vos deixo qual é: a Paisagem.
Escrever vislumbra, não presta para consignar. Escrever, como neste livro, leva fatalmente o Poder à perca de memória.
E sabe-se lá o que é um Corpo Cem Memórias de Paisagem.
Quem há que suporte o Vazio?
Talvez Ninguém, nem Livro.”
(Maria Gabriela Llansol, O Livro das Comunidades).
As histórias ouvidas e anotadas pelo escritor Rosa, porém, certamente, fazem parte do repertório dos Xacriabá. Levo à aldeia o conto “Meu tio o Iauaretê”, e eles reconhecem ali, claramente, uma versão da história da Iaiá Cabocla, a onça-totem que protege sua vida e sua terra. O finado Estevão Gomes é o homem que se transformou na Onça, que volta no Toré a cada vez que ela é chamada a proteger a terra, sobretudo contra os que sempre querem usurpá-la de seus legítimos habitantes. Maria-Maria, a onça que por força amorosa leva o homem a transpor os limites da humanidade, lembrou-lhes imediatamente Iá-Iá.
Depois lemos “Uns índios (sua fala)” e pensamos na tradução, e no ensaio de Haroldo de Campos “A palavra vermelha de Hoerderlin”. Umas palavras cavadas no amontoado de cultura sobreimposto, resistentes, vislumbres da antiga língua Akuen dos Xacriabá, vieram trazer à fala em português a mancha necessária a que o idioma indígena jamais desapareça. Guimarães Rosa, neste apontamento publicado mais tarde no livro Ave, palavra, percebe que a tradução – sob as leis da transformação, não do simples transporte – entre o mundo indígena e a língua portuguesa tem como princípio a descoberta. A surpresa do encontro a cada palavra estrangeira. Uma vez em processo de descobrimento, cada palavra ou sonoridade fulgoriza nova natureza, que se desvela na multiplicidade de mundos nascentes e evanescentes: I’ti não sendo apenas cor, mas sangue. Então vermelho se literalizando como sangue de arara, verde como sangue de folha. Ainda mais vero e belo. Pensamos no tradutor que buscasse o caminho da cópia, da sobreimpressão, dos vivos no meio dos vivos, do mundo no meio dos mundos, como Hoelderlin traduzindo antiquíssimas tragédias.
Na leitura dos textos de Guimarães Rosa, os índios podem destituir da memória a história do Poder. Nas anotações lingüísticas, nos cadernos do escritor, intituladas tão rascunhadamente “Uns índios (sua fala)”; no nome da onça Maria-Maria; nas tantas palavras tupis; africanas... a Língua também é a língua:
Ela lambe minha mão, lambe mimoso, do jeito que elas sabem pra alimpar o sujo de seus filhotes delas; se não, ninguém não agüentava o rapo daquela língua grossa, aspra, tem lixa pior que a folha de sambaíba; mas, senão, como é que ela lambe, lambe, e não rasga com ela o filhotinho dela?
Assim encontramos um princípio onde começar a busca pelas tão sonhadas línguas. A escrita, como dela sempre disseram, é urna secreta guardando os restos de falas, mas nossa grande companheira na caminhada é a dúvida, que traça no ar, sopro de vida, o movimento do corp’a’screver. Como diria Walter Benjamin, lemos o que não foi escrito. Traição? Os Xacriabá, jogadores de verso, hão de compor seu por vir.
O impossível encontro, que quanto mais palavras nossas, mais longe a língua deles. E foi daí que Guimarães Rosa silenciou.
Nota:
Texto baseado em depoimento escrito em homenagem a Guimarães Rosa. Veja-se Almeida, M. I. (2008). Cem memórias de paisagem. Suplemento Literário, Vol. 1, p. 30-31. Belo Horizonte, Secretaria de Estado da Cultura.
Maria Inês de Almeida