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Limiares do animal-poema em Hamartía

Atualizado: 28 de dez. de 2022

Luciana Abreu Jardim


Pintura de Niura Bellavinha. À vida (2005). Acrílica e óleo sobre tela, 240 x 240 cm.



Hamartía, de Luís Serguilha, é uma composição híbrida, deixa-se ler como um longo poema, mas também guarda momentos do drama, do trágico, do romance experimental e do ensaio filosófico. As marcas do teatro antigo se manifestam a partir do título, que indica o erro trágico do Livro 13 da Poética aristotélica. Não se trata nessa proposta de leitura de voltar à tradição crítica das sofisticadas camadas de interpretações de Édipo-Rei, essa peça de Sófocles que oferece elementos ao erro trágico. No entanto, não podemos nos esquecer que um dos fios possíveis nessa trama está no estranhamento despertado pela faculdade da vontade e sua herança deslocada para outras formas do gênero dramático, nas quais se chocam referências ao teatro elisabetano e também ao teatro do absurdo. Retornar à faculdade da vontade a partir dessa composição implica reconhecer que as forças-lahars[1], as quais nos levam sismicamente por uma criação de coexistências diversificadas, de forma a substituir narradores tradicionais ou o sujeito-lírico por termos próximos da Estética do Laharsismo[2], que despontam em permanente tremor diante de uma linguagem atravessada pela interação com alteridades amiúde descartadas da experiência linguística.


Se atualmente a faculdade da vontade se manifesta com base na ação e na prática dos sujeitos, quando a buscamos no mundo grego, seguindo as pesquisas de Jean-Pierre Vernant e de Pierre Vidal-Naquet, no ensaio “Esboços da vontade na tragédia grega”, encontramos, ao final da exposição de algumas teses sintetizadas por eles, a sugestão de que essa categoria passa pelo que os estudiosos chamam de “decisão sem escolha” (1999, p. 199). Obviamente, eles sugerem que a questão é mais ampla do que o resumo parece indicar, e já nos expõem para a investigação da “escolha” e a sua ausência no mundo dos gregos. As sinuosidades estão por toda parte nessa abordagem e, como eles advertem já na abertura do ensaio, não podemos transpor a nossa relação com a vontade, mediada pela subjetividade, à experiência de vida daquele período. Percorrer inicialmente Hamartía nos leva a uma volta à tragédia sofocliana e à perplexidade diante do infortúnio de Édipo, que, a despeito de suas boas intenções, e até mesmo do que poderíamos chamar de “vontade”, comete os crimes de parricídio e incesto. Não são poucas as passagens do poema Hamartía que geram pensamento em torno desse personagem trágico. Encontramos, no fecho da primeira centena de páginas, uma longa exposição crítica sobre Édipo, na qual a personagem FLONA e seu cérebro entram em choque com o que é chamado de “edipianização”. O fragmento a seguir apresenta um movimento contrário à recepção do mito de Édipo, põe em xeque os interditos que o acompanham, considerando a sua legitimação uma via para o enfraquecimento do corpo na sua relação com as experiências voltadas ao acontecimento.

[...] a edipianização tenta se instaurar, fragilizando as relações polissémicas do acontecimento: em FLONA nada se explica por forças edípicas, a vida não se justifica, não se fundamenta por meio de redentores, de comparações, de mártires, de algozes porque as conexões oblíquas do desejo e do devir-falsificante-metamórfico desdobram as correntezas das durações alegres do trágico que se entranham livremente na força espiritual (SERGUILHA, 2020, p. 119-120).


Há que voltar ao drama de Sófocles, Édipo-Rei, e à bifurcação na estrada que leva ao episódio do assassinato de Laio, para nos distanciarmos da restrição desenhada pelo dramaturgo. Na peça de Sófocles, Édipo fica limitado a agir em legítima defesa ou a desistir da própria vida heroica. O impasse exacerba-se porque ele fica enredado em caminho que não o deixa escapar. Na proposta serguilhiana, somos constantemente lançados à exuberância de trilhas, encruzilhadas, não ficamos reféns de infortúnios sustentados pela geografia claustrofóbica, e provavelmente não precisamos matar o pai (mesmo de forma inconsciente, suspeitamos que esse imperativo não se impõe aos leitores) – talvez porque as forças-lahars nos resguardem do parricídio, talvez essas forças dependam de um pai, ainda que desafiado, para realizar uma espécie de revolta na estrutura pátrio-familiar. A contrapartida de Hamartía habita nas flutuações das palavras em permanente estado de paridura, o que não deixa de considerar também a destruição nesse processo criativo, culminando na vida pulsante do desabrochar: “HAMARTÍA cria porque destrói, flutua, estira as ondas germinativas. É força inumana que passa a morte” (2020, p. 120). Sendo diferente da punição que acompanha as tristes escolhas de Édipo, Hamartía produz caminhos alternativos, fazendo das opções sofoclianas uma clausura sem necessidade, pois, segundo as forças-lahars: “todas as trilhas rebentam indecifráveis e as incompletudes oraculares fazem saltos absolutos: nervos em contraluz provocam rotações impessoais dentro das cabeças: volumes de vapor desarticulam o olhar-múltiplo de FLONA: arremessar malhadores de fugas espirituais para as pulverescências do obscuro)” (2020, p. 256). É preciso experimentar os muitos caminhos para além do pai e de suas camadas de interdições relativas às sensações do corpo. Mesmo para os leitores-lahars, as trilhas se escondem, podem provocar a asfixia daqueles que insistem desvendar ou estabelecer atalhos diante dos mistérios dos deslizamentos e das movências imprevistas do espaço textual abrigado pela metáfora do mangue. O mais indicado nessa composição seria trocar o emprego da figura da metáfora pela sugestão de movimento presente na metamorfose: “Com FLONA fazemos trilhas ocultas-movediças entre olhares sonoros sem hierarquias” (2020, p. 272). Nota-se também que, semelhante aos deslocamentos da história do pensamento filosófico, nesse fragmento o poeta, na esteira de Derrida em sua crítica ao logocentrismo, promove o abalo do primado da visão, fazendo o sentido visual partilhar a cena com a escuta. Assim, a cegueira, em Hamartía, já não serve como equivalente da autopunição de Édipo no gesto de arrancar os olhos, mas antes como uma saída lúcida para tremendas perdições nas quais as rotas se tornam irreconhecíveis, pois Hamartía “misturou a carne do grito com as intensidades virtuais” (2020, p. 368), e se chega ao “desmoronamento incessante” de um cego numa estética da avalanche, atropelando o criador chamado de “poeta-filósofo”, em estado de “contemplação contagiante, indeterminada, gongórica e tremendamente cega-lúcida-improvisada” (2020, p. 520). Daí a composição lahar abriga uma personagem rítmica que poderia fazer parte de uma das peças da Beckett, com seus escaladores de paredes[3]. Há também O ESGRIMISTA-HAMARTÍA, cuja cegueira associa-se à mistura de matérias, o que o faz participar de um papel que oscila entre a ousadia da riqueza dos sentidos e a hesitação por não alcançar o que no texto se manifesta como ausência da “ruína do pensamento”. Contudo, esse personagem deslizante e sua cegueira, a romper e transler a cegueira de Édipo, nos coloca em sintonia com um dos fios mais fecundos da trama serguilhiana, qual seja, a palavra: “a palavra abre-se mortalmente para se manter heterogênea” (2000, p. 242).


Por sermos instigados à heterogeneidade da palavra, seguiremos da palavra não o convite a um atalho da trilha, mas um tema delicado que participa de uma longa discussão filosófica acerca do par antitético homem x animal. É preciso retornar ao que a força lahar nos impele a pensar, ou seja, a essa abertura mortal da palavra a fim de mantê-la “heterogênea”. Mas o que significa manter a heterogeneidade da palavra? A quem ela seria heterogênea, uma vez que se endereça especialmente àqueles que podem manter uma conversação, isto é, aos sujeitos falantes?


Não escaparemos de buscar esse outro, que, no recorte dessa investigação, pode estar no animal, ou, em outras palavras, aqueles privados de fala. No seminário A besta e o soberano, Derrida, logo no início, nos adverte para repensarmos a garantia que nos foi imposta a partir dos limites oposicionais e entre eles menciona o par homem/animal. Ao acenar para os atributos de “porosidade” e de “fragilidade”, no amplo par antitético natureza/cultura, que move a questão da animalidade, o filósofo propõe a noção de “limiar”, que fará a costura de toda a sua argumentação. Durante o seminário, o filósofo ocupa-se da problematização que encontra nas palavras gregas bios e zôê, cuja tradução é vida, tecendo considerações sobre as dificuldades de estabelecer distinções entre zoologia e biologia. Trata-se, assim, de pensar nos limites dessas vidas e de suas relações éticas. Nessa perspectiva, o filósofo propõe um retorno às categorias do tempo e do espaço, oferecendo como exemplos situações que tocam na nossa responsabilização diante de limites do movimento: as jaulas dos jardins zoológicos, por um lado, e por outro, não tão distante, o confinamento dos doentes mentais em hospitais psiquiátricos. O limiar se manifesta para abalar as demarcações, associando-se, como nos diz o filósofo, ao “transpor”, “não transpor” os interditos, o que envolve os animais dos jardins zoo, os internos do hospital psiquiátrico, mas também os seus espectadores, afetados pela cena. Derrida classifica-os ironicamente como os “curiosos uns pelos outros” (2016, p. 440). O limiar perturba a possível certeza das fronteiras dos termos em relação oposicional, o limiar abala garantias de pertencimento estanque ao par dentro/fora. O limiar problematiza a partilha do desconforto, do mal-estar diante de um outro – “o limite indivisível entre o animal e o homem” (2016, p. 440). O limiar nos leva a pensar numa forma-linha, “forma de uma linha de demarcação tão indivisível quanto uma linha sem espessura” (2016, p. 441). O limiar, em sintonia com a desconstrução, questiona a garantia da indivisibilidade, produzindo, a partir dessa pretensa linha indivisível, movimentos de entrada e saída. Daí surge uma definição: “limiar é, então, sempre um começo do dentro ou o começo do fora” (2016, p. 445). Seguindo Derrida, o limiar nos assalta com a pergunta “como começar?”


Como começar a ler Hamartía?


Talvez um começo para fora de Hamartía possa nos levar a sentir que seu autor já estava no resgate da animalidade em suas tensões de escrita antes de escrever e publicar esse livro. Em Plantar rosas na barbárie (2022), por exemplo, cuja publicação é anterior à crescente popularização do tema em universidades brasileiras, Serguilha já problematizava o fazer poético, o leitor, a leitora, a (in)definição do objeto poético, além de outras questões literárias, fazendo no corpo de seus receptores movimentos ritmados, envolvidos por anatomias vesânicas, assimétricas, de perfuração, ora na superfície da derme, ora entre tecidos moles de revestimentos finos e inoperáveis. O poeta lahar não nos poupa de uma experiência de escarificação – para usar um de seus termos que permite a criação de conceitos do corpo-escrito por vir. Em os esgrimistas de Á-peiron (em vernação), que está na abertura do primeiro volume das Obras Poéticas (2022) reunidas do escritor, vindo antes mesmo de Plantar rosas na barbárie (2022), a força-lahar narradora nos põe abruptamente em contato violento, como faria uma avalanche, com um animal, que parece nos habitar – nós, que estamos dentro do logos; mas também nos põe em contato com a zôê, que participa de todos os viventes, incluindo tanto a besta quanto Deus. Reparem que no recorte a seguir, os deuses, contaminados pelas garras de um animal, podem apresentar articulações, os “carpos dos deuses”, metamorfoseando-se em alguma coisa, um outro, que parece bicho-aranha – as “teias” – tendo também nesses deslizamentos de formas os brônquios, que participam dos mamíferos, embaralhando zonas de quem pode falar na emissão de uma “voz”, mas uma “voz oculta”:


[...] um ANIMAL crava-se nas inervações dos carpos dos deuses, fragmenta-se dentro de uma boca do impensável pantaneiro, se torna uma cardanha cartilagínea, um revérbero das teias das lucidezes que experimentam a escarificação do silêncio dos brônquios de uma voz oculta (SERGUILHA, 2022, p. 14).


Essa voz nos leva a pensar sobre o começo da relação homem/animal por meio de uma referência indispensável aos buscadores de começos diferidos, a saber, a referência aristotélica. Ainda que seja desejável fazer a separação entre voz e fala, que inclusive é realizada por Derrida, ao expor a distinção aristotélica, no livro I da Política, entre a emissão de sons (phônê), que pode ser encontrada nos animais, e o logos, pertencente aos sujeitos inseridos na linguagem e envolvidos em suas implicações políticas e éticas, está na limiaridade da voz dessa cena poética serguilhiana um questionamento espacial, seguido de um duplo efeito de propriedade e endereçamento. De onde ela vem? A quem pertence essa estranha voz chamada de “oculta”? Se não se pode afirmar que há aqui a separação de uma phônê sem logos, também não se pode dizer que esse logos atravessado pela razão impede alguma contaminação da ordem daqueles que são narrados/escritos, ou para usar uma palavra cara ao autor, esculpidos nessa tessitura a jogar com as possíveis fronteiras já sinalizadas por Derrida diante da sugestão do fonocentrismo (cf. Da gramatologia).


Segundo Derrida explica no seminário, o fonocentrismo liga-se “à hegemonia atribuídas à palavra vocal e à escrita fonética em todas as culturas” (2016, p. 492). Em seguida, o filósofo observa que, para além da influência da cultura europeia, encontramos também escritas que não são fonéticas; a escrita chinesa é um exemplo. Derrida nota que foi concedido ao vocal o que chama de “uma autoridade” (2016, p.492-493). Na sequência dessas explicações, o filósofo reafirma que a phônê aristotélica diz respeito apenas a uma “emissão de sons”. Reproduzo o argumento aristotélico recuperado por Derrida:


“Sem dúvida, sons da voz (phônê) exprimem a dor e o prazer; também o encontramos nos animais em geral; sua natureza lhes permite apenas sentir a dor e o prazer e se manifestar entre eles. Mas a palavra (logos), ela, é feita para exprimir o útil e o nocivo e, por conseguinte, o justo e o injusto [dito de outro modo, entre a palavra (logos) e o bem (agathon), o justo e o injusto (kai to dikaion to adikon), há um laço essencial. Os animais são incapazes disso; eles têm certamente a phônê, mas eles não têm nem logos nem uma relação com o bem, com o soberano bem e com o justo ou o injusto]” (2016, p. 493).


Ler-se em estado de escarificação-lahar, como é sugerido pelo animal-poema, não é apenas ser perfurado pela animalidade das forças lahars de modo a sentir a phônê que constitui a animalidade esculpida pela criação, experiência de escrita e leitura a nos arrastar deformando a nossa pretensa racionalidade. Ainda que seja também essa experiência dos sons da voz em suas várias camadas de dor e prazer, a escarificação do animal-poema abre-se para zonas intersticiais entre o grito e a voz, vazios que machucam o corpo do leitor, fazendo do que é escrito a captura de uma linguagem atravessada pelo estranhamento vindo de um antes do humano (o animal, mas o vegetal e o mineral também) entre murmúrios, silêncios, porque o animal-poema atiça zonas tremendamente escarificadas pela ação do tempo, por gestos evidentes de ações de desgaste, no exemplo dos signos geológicos, mas também por movimentos aparentemente frágeis, imperceptíveis e não por isso menos potentes na sua devastação regerminativa – assim como atestam as palavras no cruzamento labiríntico das “energias não mensuráveis”. Plantar rosas na barbárie (2022) implica estar entre a tentativa que nos leva para o logos e esse entre, limiar estranho que nos joga para as vozes não apenas humanas, não apenas para a voz da personagem LL e seu paradoxal sorriso mudo, o de uma mulher complexa e repleta de porosidade da matéria-mundo, mas para forças que perturbam e deslocam as possíveis moradas escorregadias dessas bocas não exclusivamente humanas:

[...] a linguagem silenciosa das termohalinas vulvares com escarificações a resvalarem no corpo múltiplo livrador de detalhes da matéria: palavras adentram-se na inquietação das micropercepções do real por meio do respiramento intensivo das bordas do mundo: as palavras revolvem, disseminam o vazio com as bocas estrangeiras, afectadas por energias não mensuráveis, por campos de interacções de poríferos escamígeros que desorientam, suspendem, adiam, destroem os mandos do olhar: as palavras criam zonas infecundas, enervamentos de labirintos combinatórios no infinito das zootomias: as palavras refazem os jogos de força com clásperes entre visões de limites inatingíveis e transfronteiras perpétuas com entrecortes de uma pré-devastação: do outro lado, o EXCRIPTOR se encosta a um leão de pedra (sorrisos mudos de LL: mónadas fractais, germes fractais, cristalinos fractais): [...] ( SERGUILHA, 2022, p. 186).


Hamartía volta ao mesmo tema e no recorte escolhido desdobra o ponto, que aqui faz ressurgir LL, mas atravessada por deformações radicais e recusas a mínimos nomes humanos – Hamartía quer atingir zonas de flutuações entre as palavras, espaços intersticiais, nos quais os corpos e seus nomes entram em estado de desaparecimento. E os sorrisos de LL se perdem nas metamorfoses de bocas- labros:


Nós nos desapossamos das palavras quando tentámos falar para perpassar a morte e a desrazão. Usámos todos os jogos sem delimitações, todas os vocábulos divinatórios entre dados lançados e por lançar. Há imensa dificuldade em pousar as palavras na audição antes de falar, por isso não escutámos FLANAR, estamos distanciados das cartografias que acontecem no interior das palavras. Quem fala tem o mundo hesitante, os rasgos metamórficos na boca sem retardamentos, tem a força matérica a baloiçar nos lábios do animal, sim, a coreografia da matéria entranha-se nos labros e nutre-se de pontes de velocidades ilimitadas que nos arremessam por meio de múltiplas lentidões para o interior hesitante das palavras (SERGUILHA, 2020, p. 101).



No começo era um outro a nos anteceder

Cada composição poética deveria nos conduzir, ainda que telepaticamente, a uma espécie de contato com a experiência da alteridade, aquela nos leva ao heterogêneo e ao mesmo tempo partilha conosco de uma linha de tempo da qual somos seguidores. Não há como escapar do “A seguir”, subtítulo que acompanha a instigante palestra-ensaio O animal que logo sou, de Jacques Derrida, contribuindo para perturbar um pretenso começo, ainda que ele já seja questionado pelo próprio filósofo na medida em que traz à cena o tema da limiaridade na relação com as categorias tempo e espaço, abalando heranças aristotélicas que desenharam o que culminará na crítica do projeto de desconstrução ao logocentrismo, conforme é por ele desenvolvida em Da gramatologia. No ensaio sobre o animal, está em jogo a dupla acepção do estar atrás do animal, que pode ser a de caça, talvez a mais evidente, mas também a de reverência, a de uma ancestralidade que é percebida quando abrimos passagem ao olhar de um outro mais antigo que o nosso olhar. Estranhamente, o sentimento de vergonha eclode da cena em que o filósofo, na sua estreita relação visual de observação e análise das coisas do mundo, narra o seu mal-estar frente ao olhar de seu gato. O filósofo sente vergonha no momento em que é percebido sem um dos próprios do homem, a vestimenta; e nu diante de um outro, desde sempre desnudado e silenciado pela herança logocêntrica, ele descreve a sensação suscitada por esse olhar vindo de longe, detrás: “Vergonha de quê, e diante de quem? Vergonha de estar nu como um animal” (2002, p. 17). Essa sensação incômoda, que ele chama de animal-estar, se manifesta ao lado da própria história da filosofia, marcada pelo esquecimento, sendo, nas palavras do filósofo, um “esquecimento calculado”:


O animal está aí antes de mim, aí perto de mim, aí diante de mim - que estou atrás dele. E pois que, já que ele está na minha frente, eis que ele está atrás de mim. Ele está ao redor de mim. E a partir desse estar-aí-diante-de-mim, ele pode se deixar olhar, sem dúvida, mas também, a filosofia talvez o esqueça, ela seria mesmo esse esquecimento calculado, ele pode, ele, olhar-me. Ele tem seu ponto de vista sobre mim (DERRIDA, 2002, p. 28).


De qualquer forma, há nesse ensaio a afirmação de que somos olhados pelo animal – “Ele tem seu ponto de vista sobre mim” (2002, p. 28). Se o animal está fora do logos, como observa Derrida a partir do livro da Política, de Aristóteles, subsiste nesse outro a voz, a phônê sem logos, que se modela, desde a filosofia antiga, à luz de sensações de dor e de prazer. Ao lado dessa limiaridade complexa que se manifesta especialmente na poesia serguilhiana, podemos pensar na inclusão proposta pelo filósofo Bentham, segundo a qual é defendida a ideia, recuperada por Derrida, de uma outra pergunta que não é mais apoiada sobre o fato de eles terem ou não linguagem, mas a seguinte: Eles podem sofrer (Can they suffer?). Aí estaria um ponto de análise a partir da proposta serguilhiana que nos joga para o estado de permanente escarificação e ao mesmo tempo cultiva extremado cuidado perante esse outro que nos antecede. Aqueles que saem mais esfolados da experiência-lahar, além do próprio excriptor, são as forças lahars e seus leitores. Quanto aos animais, seria demasiado empobrecedor sustentar que são poupados, pois eles compõem nos interstícios do par dentro-fora, fora-dentro, as vozes ora à semelhança humana, ora metamórficas. Outras perguntas que se impõem: Será que as forças lahars narradoras permitem que os animais do poema avalanche tenham um ponto de vista sobre mim? Tendo em vista os efeitos de contaminação da limiaridade, será que essa pergunta seria pertinente nessa poética? E o que restaria da pergunta que ainda mantém um ponto de vista sobre o outro?


Parece que, mesmo na abertura para a alteridade, segundo a filosofia de Bentham, encontramos ainda um resíduo de soberania – atributo que é dado aos humanos, seguindo o curso de Derrida intitulado A besta e o soberano.



Um começo possível: o gado Mithan



Pintura de Niura Bellavinha. Infiltração nº 6 (2005). Acrílica e óleo sobre tela, 200 x 200 cm.



A soberania está em conexão com a arché, esse começo carregado de uma forma bem demarcada de comando a passar pelo marco de nossa racionalidade – a nossa cabeça. Sim, a cabeça mais do que simboliza o que abriga pretensamente com exclusividade o pensamento, a fala e também a voz, a cabeça marca a semelhança entre humanos e conduz a ações fraternas entre os que se reconhecem como “semelhantes” através de sorrisos e várias expressões que transitam por exemplo pelo êxtase e pela alegria, mas também em torno do cinismo e do fingimento. Trocas sensíveis por meio de um rosto modelam condutas éticas na filosofia de Lévinas, por exemplo, e também na psicanálise de Lacan. Derrida recorta passagens de um texto lacaniano que contribuem para a compreensão do rebaixamento dos animais. Ao retomar “Funções da psicanálise em criminologia” (1950), nos Escritos, Derrida chama a atenção para um começo que o levará, em seguida, à ligação entre soberania e cabeça. Observem que o filósofo, na intenção de problematizar os limiares entre homem e animal, busca o que designa de “começo” para Lacan e o encontra na lei: “Lacan começa declarando que o próprio do homem, a origem do homem, o lugar no qual a humanidade começa é a Lei, a relação com a Lei (com um L maiúsculo)” (2016, p. 158, grifo nosso). Caberia ao homem a liberdade de seguir ou não as leis; ao passo que a besta, ainda que possa matar, não chega a articular o mal, o que a impede de ser designada uma criminosa. Assim, estabelece-se um vínculo fraterno entre os semelhantes, que, na leitura crítica de Derrida, se restringe à propagação de valores fraternos, no uso das palavras “próximo” e “irmão”, que ele faz questão de destacar e que são especialmente cultivadas entre os cristãos. Derrida constata em Lacan os ecos do que identifica ironicamente sob o nome de “fraternalismo do semelhante” (2016, p. 164). Entre obedecer ou não à lei por meio de uma suposta liberdade humana e a conduta fraterna que envolve os “semelhantes”, o elo com a cabeça parece um tanto frouxo; no entanto, cabe ao rosto consolidar a soberania humana sob a capa de boas ações. Na leitura derridiana, semelhante para Lacan compreende apenas “o vivente com rosto humano” (2016, p. 167). Aí reside a crítica do filósofo, que será indispensável para a leitura do animal na Estética Laharsista.

Derrida entende como semelhante todo vivente, não apenas o humano. E, ao problematizar o semelhante para Lacan, o filósofo retorna ao Can they suffer?, de Bentham, ainda que não o refira. Reparem que a pergunta que ele nos lança já contém uma abertura para o estrangeiro, para essa categoria a que ele inclusive dedica um livro sobre a hospitalidade: “Será que uma ética, uma prescrição moral nos obriga apenas em relação aos nossos semelhantes [...] ou seja, ao homem, ou será inversamente que ela nos obriga em relação a qualquer um, a qualquer vivente que seja e, portanto, em relação ao animal?” (2016, p. 349)


A poesia de Serguilha, sempre envolvida na relação ética-estética, participa dessa mesma abertura ao que repercute como terra estrangeira aos signos que nos são familiares, podendo não soar minimamente reconhecível para aqueles distantes de experiências empáticas com um “semelhante” não-humano. Destacamos uma passagem de Plantar rosas na barbárie na qual a poesia se conecta a forças já tomadas de estranhamento, tributárias de um fora de controle possivelmente humano e também de indecidibilidade, que parecem encontrar, talvez colidir, contra cabeças diferenciadas porque “heteronímicas” – mas ainda assim “cabeças”:


Uma poesia advém cruelmente insatisfazível, insaturável, está sempre na alta voltagem das forças ectodérmicas imanipuláveis, indecidíveis e esguelhadas por cabeças heteronímicas ao cimo de semióticas alógicas e forqueadas por transduções anorgânicas onde vidências hiperestésicas batem no inconsciente disfórico e medúsico até dilatarem o hiato da catástrofe com arquitraços sanguissedentos entre quedas babelizadas pela vernação animal (SERGUILHA, 2022, p. 187).


Hamartía, ao se afastar de Édipo, em alguma medida, também dele se aproxima quando exacerba a perdição nas trilhas. Não mais a encruzilhada que o perturba e o leva ao parricídio, agora “as trilhas rebentam indecifráveis” (2016, p. 256). Nessa cena encontramos não o desnorteamento que poderia estar na cabeça de Édipo, metáfora ampla dos interditos que as forças lahars ambicionam transpor, por aqui há cabeças, um resto apagado de rosto a tocar no imperativo da visão, norteador da filosofia ocidental, que se modifica, se multiplica, evitando a punição da personagem sofocliana de arrancar os próprios olhos do rosto: “[...] nervos em contraluz provocam rotações impessoais dentro das cabeças: volumes de vapor desarticulam o olhar-múltiplo de FLONA: arremessar malhadores de fugas espirituais para as pulverescências do obscuro)” (2020, p. 256). Há cabeças nessas trilhas – e elas parecem em permanente mutação caleidoscópica.


No entanto, há cabeças mais próximas das bestas e talvez da composição conceitual do animal-poema. Pelo menos a que se deixa avistar na impressionante, delicada e interminavelmente longínqua cena do gado Mithan, produz o efeito perturbador nas forças lahars narradoras, que, em sinal de respeito, parecem apenas espreitá-lo numa distância a marcar um antes daquelas cabeças de gado de corte. Referimo-nos a uma experiência de constrangimento ao antes percebido por Derrida no momento em que fica nu diante do gato. Notem que há um corpo a observar o gado, um corpo, provavelmente humano, em virtude de sua verticalidade ou “tentativa” de manter-se ereto: “um corpo tenta ficar de pé, procurando visões que deixam de acontecer porque desconhecem as mensurações das distâncias do gado Mithan” (2016, p. 157).


Não é necessário descrever o sentimento de vergonha misturado ao de devoção diante dessa cena e jamais encontraremos a narração banalizada de sentimentos na poética lahar. Em contrapartida, é possível flagrar nessa construção econômica algo do animal-estar referido por Derrida. Nesse discreto “duelo” de cabeças humana e animal proposto por Serguilha, mesmo que não se possa sustentar uma rivalidade ancorada no senso comum, incluímos uma discussão, a partir do seminário A besta e o soberano, que diz respeito ao que Derrida chamará de “léxico da devoração”, no qual devorador e devorado deixam vir à tona o gesto de abocanhar o outro. Derrida, no início do seu seminário, desenvolve esse léxico a partir do lobo, animal na base do contrato social de Rousseau, animal literário do gênero fábula, um animal que, na sequência dessa proposta, receberá a nossa dedicação para um estudo voltado à Kalahari, composição serguilhiana cuja personagem rítmica de destaque é a loba. No exemplo do lobo, que, por motivos de tabus e hábitos alimentares, pode ser expandido para o gado, nos deparamos com um conjunto que compõe o rosto: “Há a boca, os dentes, a língua” (2016, p. 49). Há também a eclosão da violência nos verbos morder e engolir, que são lembrados pelo filósofo e, não podemos nos esquecer do morder serguilhiano, que ocupa o título de um dos seus livros mais violentos: falar é morder uma epidemia. Nas diversas referências desse léxico, Derrida se ocupa da “interiorização” dessa devoração, que irá compor um dos limiares mais interessantes da poética lahar, produzindo conexões entre o homem e a soberania. Abocanhar o outro implica interiorizá-lo, e a explicação do filósofo joga com limiares entre animal e homem na medida em que ele enumera elementos a formar a oralidade que compartilhamos com os bichos que portam uma cabeça. Assim a “devoração interiorizante” passa “pela boca, pelo focinho, pelos dentes, pela garganta, pela glote e pela língua – que são também os lugares do grito e da palavra, da linguagem” (2016, p. 50). Trata-se, portanto, de uma devoração alterada para uma vociferação, sendo lida pelo pensador tanto como uma “devoração vociferante” ou “a vociferação devorante” (2016, p. 50). Dentro e fora, interior e exterior, animal e homem, numa dança que deixa à mostra a tensão grito-voz. Hamartía nos esclarece que gritar é diferente de berrar (2020, p. 104): “O berrador não GRITA porque não se expressa. O berrador não fala porque quer denominar tudo, faz da vida um drama, confunde movimento com remoção estridente, necessita de categorizar o mundo, a frivolidade expelida pela sua embocadura nunca atingirá e selecionará o estranho, o incógnito” (2016, p. 104-105). A distinção entre berrar e gritar não serve para separar bicho e homem – e o grito, que poderia ser atributo da besta, algo a anteceder a linguagem, está em ambos e nos seus intervalos. Reparem que a distância referida ao gado Mithan parece impedir a propagação dos sons. O grito, para além dessa cena, no léxico da devoração, esculpe a poética lahar, constituindo uma marca do poeta, uma homenagem constante às pinturas de Francis Bacon, especialmente na paradoxalidade do sintagma “grito insonoro”, a reaparecer em diferentes textos como um chamado de leitura. Em Hamartía, grito e desejo se encontram para fazer o desaparecimento do humano, outra constante serguilhiana. O estrangeiro que leremos a seguir remete ao que Derrida escreve em Da hospitalidade, que ambiciona a “lei incondicional da hospitalidade ilimitada”, ampliando os seus exemplos[4] (2003, p. 69): A personagem rítmica FLONA, não mais identificada à semelhança dos humanos, às voltas com “múltiplos gritos”, faz desses gritos um processo de passagem de expansão para uma vida por vir. Não mais utilitarismo, finalidade, acabamentos, formas identificáveis, a voz de FLONA profetiza um estrangeirismo em curso:

a voz de FLONA surge na desaparição dos rastros humanos. O desejo busca forças transversais, flutuantes, sem finalismos, a corporização do desejo é ele mesmo, é um ritmo verbal intransferível, sem projecto, sem desígnio porque busca não apenas os seus espasmos, os seus múltiplos gritos, mas, também, a sua expansibilidade de uma realidade não absoluta: a vida não está finalizada. O desejo atravessa o corpo e a mente simultaneamente. O desejo não aprisiona. Ele livra, solta, poliniza. O desejo é generoso porque é fortalecimento, é expressionista. Não tem soluções e assimila diferenças (SERGUILHA, 2020, p. 121).

Hamartía problematiza falas advindas de uma força etológica, que, muito distante de trocas antropomórficas, não procura no animal uma contaminação com o humano, pois a busca ao estilo de uma avalanche e sua destruição regerminativa reconhece um antes no animal, anterioridade atravessada pelo efeito que repercute animalizações no humano. Tais animalizações, no entanto, precisam de nossa linguagem na esfera poética, por isso o poeta lahar forja uma atmosfera a causar estranhamento, uma escritura que chama de agramatical, caótica e anorgânica (inspirada no corpo sem órgãos, de Antonin Artaud, mas pautada pela radicalização da troca de lugar dos órgãos), na qual os entes saem de olhos feridos – pois se incentiva “potencializar transumâncias no sangue-do-olhar”. Ainda subsiste a sugestão da permanência de um rosto; nesse caso de rebanho de cabeças portadoras de “olhar” com sangue, possivelmente escarificado pela aproximação do animal-poema:


A fala é uma força etológica. O berrador elimina qualquer tentativa de encaminhar as palavras até o limiar respiratório e ao avesso musical onde a força espiritual se transforma numa passagem deslizante que jamais começa porque é um salto da resistência cósmica. O berrador não espera a fala do outro, não explora o silêncio, não aguenta o dizer do estranho, não alcança a incógnita dos acessos, a aprendizagem inventiva porque falar-FLANAR não é manifestar, expor, nem trocar, é potencializar transumâncias no sangue-do-olhar, produzir lugares do-entre-nós com sopros estrangeiros que combatem poeticamente o mundo (SERGUILHA, 2020, p. 105).


Se pensarmos à luz da semelhança entre humanos, essa cabeça se fortalece. Observem que o chamado do silêncio se conecta com a escuta, aliando-se às orelhas que envolvem um rosto. As orelhas dos lobos, as orelhas do gado. A escuta do silêncio avoluma-se por meio de uma moldura-rosto, mas a relevância desse suporte precisa ser revista quando o rosto diminuir até ficar, em outras cenas, quase sem forma, ou disforme. A força lahar narradora, apesar de sua cabeça, nesse conjunto de cenas que envolvem a do gado Mithan, guardando semelhança com a cabeça humana, é narrada como distante, não se deixa alcançar. Em especial na cena do gado Mithan, a procura pelas visões frustra-se justamente porque o distanciamento entre homem e animal é desconhecido (2020, p. 157). A sugestão da força lahar narradora está na produção de “lugares do-entre-nós” e de seus “sopros estrangeiros”. Vamos agora começar a perder a cabeça, ou deixá-la em menor evidência.

O começo das serpentes


O evangelho de São João nos diz que no começo era o verbo, e Derrida acrescenta que, na tentativa de elencar os começos possíveis, o verbo deve ser entendido como (logos) e o logos era Deus. Mesmo sem problematizar diretamente o livro do Gênesis, encontramos a serpente em um poema chamado “Snake”, de D.H. Lawrence, escolhido pelo filósofo para perturbar a primazia da cabeça, do rosto, na relação com os semelhantes. Para retomar a intrigante busca derridiana em torno da existência ou não da cabeça na serpente do poema de Lawrence, seria oportuno, especialmente para pensar junto à poesia serguilhiana, resumir brevemente o atributo da bestice, que, apesar de próximo das bestas, não as constitui, sendo de exclusividade dos humanos. Derrida resume o argumento defendido por Deleuze, em Diferença e repetição (2006), no qual Deleuze sustenta o seguinte ponto, que será retomado em vários momentos do seminário A besta e o soberano: “A bestice não é a animalidade. O animal é garantido por formas específicas que o impedem de ser ‘besta”’ (2016, p. 215). Importante esclarecer que a bestice, como adverte Derrida com base na leitura de Deleuze, não pode ser confundida com um “erro”, ou “ilusão”, ou “alucinação”, ou mesmo com o que pode ser da ordem da “falta de conhecimento geral” (2016, p. 216). A compreensão da bestice necessita entrar em contato com uma referência que Deleuze faz ao pensamento de Schelling, não mencionada por ele, mas Derrida observa estar em Investigações sobre a natureza da liberdade humana (2018). Nesse livro, Schelling propõe a relação entre a liberdade humana e a abertura para a sua eticidade, de modo a considerar reflexões sobre a temática do mal humano, liberdade e a existência do que designa fundo-originário (Urgrund), sendo também chamado de não-fundo (Ungrund). Nesse sentido, o animal não poderia ser considerado besta ou tributário de bestice porque não teria uma relação com esse fundo de forma a estabelecer vontade ou liberdade próprias em relação a esse fundo que é abismal. Reproduzo o resumo de Derrida: “[...] na lógica schellinguiana, assim como na deleuziana, o homem ganha forma sobre esse fundo, guardando com ele uma relação (livre, essa é sua liberdade) que seria recusada “aos animais” que “são, diz Deleuze, de algum modo protegidos contra esse fundo, por suas formas explícitas” (2016, p. 225). Nesse fundo abismal, talvez um dos próprios do homem, está a bestice, uma vez que ela perturba a ordem de um julgamento pautado no binarismo verdadeiro ou falso, dando espaço ao que Derrida nomeia de “alguma justeza” ou “alguma justiça” (2016, p. 218). A bestice encontra o homem, na sua liberdade, que é, segundo a leitura derridiana, “indeterminada”, em relação a esse fundo sem fundo e, ainda que aqui a cabeça não seja referida, é preciso se posicionar, em alguma medida, a partir dessa estrutura sofisticada. A pensar a cabeça com o argumento deleuziano de inspiração schellinguiana recuperado por Derrida, segundo o qual a liberdade contida na bestice não poder ser do outro – trata-se sempre da minha bestice, ou da nossa bestice –, o que faz Derrida sustentar ser a bestice o “coração da filosofia” (2016, p. 222), a ser lida também como a capacidade de pensar as questões nos seus limites. Curiosamente, o filósofo reconhece que se trata de levar a bestice para o problema do “próximo”, do “próprio ou semelhante” (2016, p. 222). E já vimos como o semelhante, para o filósofo, carrega em sua historicidade um vínculo restrito aos humanos.


Como a filosofia de Derrida, assim como acontece na poesia de Serguilha, estende a noção de semelhante a todos viventes, o filósofo não deixa de questionar, propondo um “reexame”, de parte da tese de Deleuze, que convém ser por nós mais uma vez retomada: “[...] os animais estão de algum modo protegidos contra esse fundo, por suas formas explícitas” (2016, p. 260). Derrida nos mostra que estar protegido já implica alguma relação com o fundo. Trata-se de uma relação pautada sobretudo pela ameaça. Se existe a proteção, é porque ela é antecedida de ameaça:


[...] quem não estaria tentado a perceber em, digamos, tantos animais, uma relação com esse fundo sem fundo, uma relação mais fascinante fascinada, inquieta, angustiada, ao menos tão abissal quanto a do homem, e, mesmo naquilo que os protegeria assim, uma proximidade sempre opressora, obsedante, ameaçadora, justamente do fundo contra o qual – mas como os humanos – os animais se protegeriam? (DERRIDA, 2016, p. 260).


Não se trata de buscar em Schelling uma liberdade para os animais, com a intenção de lhes atribuir a bestice. Parece-nos que o ponto de Derrida interroga sobretudo acerca do abalo do semelhante voltado exclusivamente ao vivente humano. Assim, a busca de uma cabeça na serpente do poema de D.H. Lawrence está lá para nos dizer da obsessão pelo próximo, estendendo algo ainda nebuloso da bestice àquele cuja semelhança parece duvidosa. Curiosamente, todo o poema é acompanhado de uma longa crítica ao semelhante, desenvolvida com base na leitura não menos crítica da filosofia de Lévinas, na qual Derrida faz questão de chamar para a discussão a pergunta que outrora foi feita ao filósofo cujo pensamento apresenta-se envolvido pela problematização do rosto. Ao ser indagado sobre a possibilidade da dimensão ética do animal a partir do questionamento – “Será que um animal tem um rosto?” –, Lévinas responde: ‘“O senhor diria que a serpente tem um rosto?’” (2016, p. 337). Ao dar continuidade ao tema após uns bons anos, Derrida oferece uma resposta sob a forma de pergunta, devolvendo a muitos leitores de filosofia e poesia uma provocação aos seguidores do pensamento levinasiano: “[...] pois bem, a serpente tem dois olhos, uma língua, uma cabeça de certa forma, será que ela tem um rosto? Que rosto tem a serpente?” (2016, p. 337). Mas o que significa ter um rosto, segundo a filosofia de Lévinas? E por que Derrida faz questão de retomar o rosto? Derrida esclarece que o conceito de rosto para Lévinas não pode ser reduzido ao ver e ao ser visto, mas compreende a fala e escuta, o que desencadeia um imperativo na ordem de uma lei, da ética. O rosto, segundo o pensamento de Lévinas, nos leva ao mandamento “Tu não matarás”; conforme esclarece Derrida, ele é transformado em primeiro mandamento pelo filósofo lituano, produzindo o efeito do próprio rosto do outro (2016, p. 337).


Há versos do poema de D.H. Lawrence, cujo título é “A serpente”, que levam à cabeça e logo chegaremos a eles, conduzindo a poesia a uma tarefa que poderia estar na filosofia. Nesse poema, há um momento em que homem e serpente entram em contato, e o homem se vê desafiado a transgredir o mandamento bíblico “Tu não matarás”, caro à filosofia de Lévinas e a todos que se ocupam com a questão da hospitalidade, inclusive Derrida, que o segue sobre o respeito do vir antes. De acordo com Derrida, o pensamento de Lévinas baseia-se num aspecto do seguir, o vir depois desenhando o respeito pelo outro, que não pode ser confundido com mera gentileza dos protocolos de etiqueta. Trata-se, portanto, do respeito pelo outro que me antecede: “Portanto, eu digo: “Depois de você”, esse é meu primeiro endereçamento ao outro como outro” (2016, p. 339). No poema “A serpente”, a despeito da situação de perigo que envolve até a sobrevivência do humano, há o que ele chama de um “primeiro vindo” – a serpente. E o filósofo acrescenta: “Eu devo respeitar o primeiro vindo, não importa quem ele seja” (2016, p. 340). Para a nossa surpresa, há um verso que aproxima a serpente do gado, com destaque e comentário do filósofo. O verso: “Ela levantava a cabeça como faz o gado” (2016, p. 340).


Reparem que parte da resposta está aqui: a serpente porta uma cabeça. E, à semelhança daqueles que mais se aproximam com os homens, os mamíferos, depreende-se que a serpente carrega uma boca, olhos, orelhas – praticamente um rosto a me enfrentar na sua ancestralidade deslizante. Sobre a comparação com o gado, o filósofo explica: “O gado é cattle, o gado não é simplesmente uma sociedade animal, o gado é um conjunto de bestas agrupadas, vigiadas, dominadas, apropriadas como bestas de consumo, bestas de criação. [...] o gado é um conjunto de bestas com vistas ao uso e ao consumo humano” (2016, p. 340). Apenas mais adiante na sua argumentação Derrida tornará explícita a existência da cabeça na serpente – provavelmente porque segue um movimento do próprio poema. Ele comenta o verso como se já não tivesse constatado uma cabeça na serpente à semelhança da cabeça de gado: “E como ela enfiava sua cabeça nesse horrível buraco, [eis aí a cabeça... essa serpente tem uma cabeça]” (2016, p. 345).


Voltemos, mais uma vez, ao gado e à cabeça da poesia serguilhiana – o longínquo e misterioso gado Mithan. É preciso insistir no fragmento que nos arrebata – “um corpo tenta ficar de pé, procurando visões que deixam de acontecer porque desconhecem as mensurações das distâncias do gado Mithan” (2016, p. 157) – a fim de marcar uma diferença numa possível condução inspirada pela leitura derridiana. Na poesia lahar de Hamartía, especialmente na cena do gado Mithan, as forças narradoras não são ameaçadas e tampouco ameaçadoras. Essas cabeças, que evocam, como bem pontua Derrida, o consumo, fazendo associações com o carnofalogocentrismo, na poesia serguilhiana parecem distantes da designação “conjunto de bestas” porque não estão em confronto com um corpo devorador, dado que o corpo humano na poesia lahar tem a tendência beckettiana de horizontalizar-se, à semelhança de personagens que recriam outras formas de movimento em situações-limite. O corpo humano se curva, sem perder a sua dança movediça, diante do animal que o antecede. Pode-se pensar que as visões, considerando outras acepções além do ver e ser visto, “deixam de acontecer” porque há incomensurabilidade entre os corpos, um desencontro no jogo de cabeças homem/gado. Lemos o gesto respeitoso do corpo humano horizontalizado diante do animal. Nas visões que não acontecem, estaríamos lendo uma tentativa de proteção do animal, e/ou do humano em relação ao animal, contra o fundo sem fundo indicado por Deleuze? Pode-se ir por esse caminho. Outra via possível seria a da crítica derridiana ao enunciado referente à proteção dada aos animais, que se alia ao questionamento da vertigem, condição abismal aparentemente restrita aos humanos, na visada deleuziana. Estaria na ameaça que representa esse fundo abismal a surpreendente relação das cabeças de gado com esse perturbador fundo sem fundo, que o filósofo classifica como potencialmente fascinante porque em conexão com o abismal dos animais. Poderíamos dizer que o corpo humano beckettiano percebe, intui essa fascinação, que pode ser até mais fascinante do que a experiência humana do fundo sem fundo, vergando-se diante daqueles que nos antecedem e que habitualmente são transformados em refeição.

Interessa-nos as cabeças que restam na cena.


Voltemos aos animais rastejantes. Será que eles, incluindo os répteis da poética avalanche, têm um rosto?


Encontramos lacraias, por exemplo, que podem ser também chamadas de centopeias. Em Hamartía, aparecem sob o nome de lacraias. Esses animais rastejantes, mais estranhos do que potencialmente perigosos, entram numa cena que problematiza a matéria. A força lahar narradora define a matéria nesse teatro de sismografia linguística do seguinte modo: “A matéria é o espaço que renasce ininterruptamente, é uma força indeterminada, instantânea e o movimento do corpo de HAMARTÍA permuta-se na incisura movediça da duração para se insuflar de vida com as anamorfoses cronotópicas” (2020, p. 142). Hamartía, para além do título da obra, aparece como personagem rítmica, a nos acompanhar pelo enredo cujo eixo descentrado está na multiplicidade de vozes que atravessa os entes até encontrar alguma boca para gritar-falar, explodindo em vozes estrangeiras que se plasmam na matéria do mundo, produzindo o efeito de contaminação com um espaço vibrátil a escapar continuamente da representação, das formas narrativas tradicionais do tempo e espaço; Hamartía personagem erra em um tempo chamado de “intensíssimo” (2022, p. 142), que, em outras passagens, e por diversas composições serguilhianas, é acrescido de atributos que produzirão encadeamento com o tempo aiônico dos neoplatônicos, em ruptura com o tempo cronológico, em sintonia com a escrita voltada à captura (im)possível da eternidade. Nesse contexto distópico, encontramos, no entanto, o estranho familiar da herança freudiana a nos assombrar derridianamente desde uma presença antiga: as lacraias ou centopeias estão entre um corpo que “dança uma geografia a-histórica-aracnídea” (2022, p. 143) para nos constranger com um antes do signo, causando-nos mais do que um mal-estar, um animal-estar, que vem de uma cabeça não diretamente problematizada, mas que não se dissocia de um movimento do corpo todo. Aqui o flagrante de uma cegueira deslocada, pois já não se localiza quem o quê a porta, cegueira muito antiga a abrir um clarão em texto barroco nas sinuosidades das cabeças das lacraias: “[...] lacraias sibilando nas rachaduras do bloco-de-luz com pontos grafites no volutear da cegueira apinhada de acupuncturas e o dédalo tenta disseminar-se com as hóstias distópicas que reverberam cronónimos infindáveis” (2020, p. 143).

Uma lacraia (ou centopeia) apresenta uma divisão simples, uma vez que seu corpo é formado por duas partes: “a cabeça e o longo tronco, homônomo, com muitos segmentos equipados com vários pares de pernas articuladas” (Brusca, 2018, p. 1062). Quanto à cabeça, encontramos a seguinte descrição: “está equipada com um par de antenas e os componentes orais estão representados pelas mandíbulas e pelas primeiras maxilas; um segundo par de maxilas está presente nas centopeias e nos sínfilos (Brusca, 2018, p. 1062). Sobre a visão das lacraias, os estudiosos deixam-na em evidência, o que contribui para a leitura do informe em Hamartía: “os olhos das centopeias vivas parecem funcionar apenas para a detecção de claro e escuro, não para formar imagens” (Brusca, 2018, p. 1073).


O destaque, que anima o movimento em ondulações cegas do animal, e divide o quadro com a cena da cegueira, está no movimento do corpo de muitos pés. Um pouco antes do surgimento das lacraias nessa passagem, a força lahar narradora alude a uma personagem rítmica chamada O ESGRIMISTA, que “acontece quando a caneta balbuciante quase-pousa no mundo e apaga os traços. A dança acontece quando o corpo-FLANAR quase-pousa no solo” (2020, p. 143) – como faz uma lacraia. Embora referida antes das lacraias, e à semelhança humana em virtude da escolha de seu nome, O ESGRIMISTA, que vem depois, se camufla num movimento veloz típico das centopeias, conforme encontramos na descrição dos especialistas de invertebrados: “a maioria das centopeias é predadora veloz, com um par de pernas por segmento e garras de veneno na ponta das primeiras pernas, as quais, desse modo, são transformadas em um tipo singular de maxilipídios conhecidos como forcípulas, ou preensores” (Brusca, 2018, 1065).


Se elas possuem essa velocidade, ainda que, de acordo com os especialistas, raramente alcancem uma centena de pernas, essas personagens cujas bocas não são descritas, mas que parecem como pinças, preparam o terreno para um mundo de errâncias, universo narrativo bélico, repleto de disputas, de conflitos entre línguas, no qual uma escuta cega eclode. As lacraias, na sua visão limitada, pavimentam o caminho para a desagregação da forma, o informe, que é uma obsessão da poética lahar:


Absorver as batalhas das línguas sumérias entre os creófagos das sacerdotisas acadianas e as epopeias sânscritas. Enxertadura da vida-EROS estimula os limiares do inacabamento de uma escuta cega, atingindo as imarcescibilidades das visões fabuladoras e uma tradição regenerada enuncia o devaneio de uma matilha-de-vontades-lamacentas atravessada pelos infrassons das línguas em de-composição, sim, as incidências das bordaduras da cegueira estão repletas de latidos visionários, de lavras incendiárias que se infinitizam na possibilidade das carnaduras silenciosas do homem-de-oblívios, do homem-nómada permanentemente contaminado pelas encruzilhadas das ÁRIAS-FLONA-FLANAR (SERGUILHA, 2020, p. 144).


Os discretos anelídeos, e mais exuberantes, os licranços, também fazem parte desse teatro dos animais rastejantes. Em contrapartida, no léxico da devoração, encontramos uma cena em que parasitas diminutos roubam a atenção da nossa pesquisa em busca de uma cabeça e de seus vestígios orais. As sanguessugas, conforme atestam os especialistas, podem se alimentar de invertebrados. São poucas as informações sobre a sua digestão, mas há uma boca com ventosas, que acompanham os gestos que elas fazem quando se alimentam do hospedeiro. Essas parasitas exercem pressão sobre o corpo de sua presa, no caso, o hospedeiro. Observa-se a existência de sanguessugas com mandíbulas cortantes como lâminas, o que produz ferimentos no hospedeiro (Brusca, 2018, p. 717). Resumidamente, semelhante a uma cabeça, as sanguessugas apresentam olhos e uma boca circundada por ventosa (Brusca, 2018, p. 714).


Em Hamartía, as sanguessugas não fogem de sua natureza de parasita, vasculhando o que há de vivo nos corpos e descartando a carne cujo sangue já perdeu a vitalidade:


(turbilhonar a intemperança das luzências das sanguessugas que abrenunciam, execram o definhamento dos corpos das estufas entre escádeas giratórias e a infixidez dos traços esponjosos que chacoalham as pústulas da esterilidade com os mostos da sabotagem mais esférica)” (SERGUILHA, 2020, p. 161).

O alimentar-se de sangue das sanguessugas pode levá-las a uma digestão de meses (Brusca, 2018, p. 716). Apesar de ínfima, a sanguessuga, no seu processo de regurgitação em permanente movimento oscilatório, em espasmos maiores que a sua própria estrutura frágil, tenta tocar no fundo sem fundo abismal. Esse abismo, que a filosofia tenta recusar aos animais, na poética lahar é dado a um parasita fascinado por um olhar arcaico da formação bruta das coisas do mundo, de suas camadas geológicas, dos magmas, de suas interferências humanas. Se há, na sequência da cena, a entrada para o pensamento de uma cascavel, é porque há possivelmente essas outras, as parasitas, que suportam e carregam e perfuram a pele dos seus hospedeiros, deixando marcas estrangeiras na tentativa de se alimentar com a vida em movimento.


A Cascavel da Gruta-do-Monge-Animata vem depois dessas parasitas, na sequência, como um animal que é dado ao pensamento (2020, p. 161). A cabeça de uma cobra nos soa evidente depois que encontramos cabeças nas sanguessugas. Essa Cascavel é hospedeira do cinema de Kurosawa e de Ozu, antecedendo-os com “olhares suspensos do pensamento”. A cascavel prepara o caminho e inspira as atmosferas nipônicas de velamentos de um mundo que passa por formas de olhar pré e pós catástrofe nuclear. Ocupando um tempo antes e depois, com ambição de eternidade, tempo crônico, a Cascavel dessa cena não morde os cineastas, mas os contamina através da pele, ao modo dos hospedeiros parasitas, a perfurá-los a pele-olho, oferecendo-lhes lentes com névoas para a deformação do corpo desde Ozu, cineasta a flagrar os rostos femininos em seus meio-sorrisos cromáticos, indicando a urgência da regerminação antes do infortúnio: “(usinas geradoras de limites do extremo onde o incriado desconhece o seu nome em contínua deriva autopoiética)” (2020, p. 162).


Em seguida nos deslocaremos para uma cabeça em movimento. Será que é possível dizer que os pássaros serguilhianos portam uma cabeça, se é que eles a possuem, para satisfazer a necessidade de semelhança que parece antes uma exigência dos humanos sobre os animais e/ou há uma cabeça nos pássaros de Hamartía a alcançar voos inacessíveis para a nossa percepção visual mediada por retornos a imagens familiares?



No começo era o voo


Ao comentar o gesto de rastejar da serpente do poema de D.H. Lawrence, Derrida reconhece um contraponto com o esplendor que pertence às alturas por meio da imagem do albatroz – um pássaro a transitar pelo poético. Cruzar o céu, na leitura do filósofo, está em conexão com um excesso que ele busca na limiaridade homem/animal, sendo diferente de um réptil, um animal “que é o mais baixo” (2016, p. 350). Cruzar o céu, habitar as alturas, também confere ao animal que voa status do excesso, que as serpentes parecem não dispor, pois o seu habitat é a terra (2016, p. 350). Essa distinção se faz para voltar à limiaridade homem/animal e à soberania, que representa os humanos. No jogo das semelhanças, serpente e albatroz possuem cabeças. No entanto, apenas os pássaros são capazes de voos, e o que pode deixá-los mais abertos a aproximações de semelhanças com a espécie humana está não na mensuração alcançável de seu voo, mas especialmente na sugestão de abertura dos limites simbolizados por eles. A soberania estaria, portanto, conectada com o que o filósofo reconhece sob o nome de “o excesso”, “a hipérbole”. Trata-se de “um excesso insaciável para ultrapassar todo limite determinável” (Derrida, 2016, p. 373). Esse argumento precisa ser acrescido das considerações sobre o pensamento de Heidegger em Introdução à metafísica, que problematizam a relação entre physis e logos, sua separação, a entrada do logos, a relação essencial do logos com o pensar e a soberania do logos (Herrschaft) para a composição da filosofia grega. Como Derrida percorre as relações entre homem e soberania, encontra em Heidegger um pensador indispensável para o tema, e, embora Derrida prefira não traduzir Herrschaft por força, preferindo traduzi-la por “soberania”, “dominação” ou “assenhoramento”, subjaz ainda um jogo de forças a repercutir sobre o par homem/animal, no qual o logos acontece por meio de violência, de “conflito de forças” (2016, p. 453). O tema do excesso na formação da soberania também precisa incluir uma discussão sobre relativizações acerca de predicados como “grandeza” e “altura”. As nanotecnologias, por exemplo, ilustram o ponto ao relacionar a soberania à potência e intensidade, atributos que não podem ser confundidos com tamanho ou grandeza. Trata-se de vincular a soberania a uma “economia do mais”, do “extra” ou mesmo do “suplemento”, na qual é possível que o menor ultrapasse em potência aquele que é considerado maior (2016, p. 373-375).

Em Hamartía, esse excesso, a ser lido também como violência, foi apresentado, se mostra desde o baixo, eclode já na terra, invadindo os animais rastejantes, e os parasitas. O excesso das lacraias contamina a estética visual de cineastas que esculpiram outros modos de ver experiências catastróficas, nas referências às imagens de Kurosawa e de Ozu, por exemplo. Quanto aos pássaros, eles estão em maior quantidade do que outros animais nessa composição que pode ser lida como uma peça teatral atravessada pelo excesso, ao estilo do dispêndio de Bataille, de cenas que nunca terminam. No começo de Hamartía, há um voo, ele é realizado pelo albatroz para anunciar um movimento de inspiração dionisíaca da filosofia nietzschiana, indicando aos receptores que a problematização “correntezas sígnicas” dessa dança experimental passa por “intervalos movediços” e retorna diferenciada nos “esboços em estado de misturação” (2020, p. 23).


Nessa língua, que é descrita muitas vezes como incestuosa, até mesmo em outros textos serguilhianos, os pássaros surgem para acentuar essa impureza. Não é à toa que Édipo foi escolhido para nos acompanhar por esses tortuosos caminhos de nascimento e morte dos signos entrelaçados a camadas de significação entre coisas e palavras, intervalos, vazios, entretempos e assombros de escarificação. A impureza de Édipo pode até mesmo ser analisada através de um pássaro, seguindo um fragmento do ensaio intitulado “Ambiguidade e reviravolta. Sobre a estrutura enigmática de Édipo-Rei”, de Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, no qual Édipo, ao cometer o duplo crime sem intenção, torna-se um “excluído”, circulando tanto aquém (monstro) como além do humano (daimon). Está na comparação com os pássaros a marca desse personagem transformado num ápolis:


Semelhante a esses pássaros que comem carne de pássaros, para retornar a expressão de Ésquilo [Suplicantes], ele por duas vezes se nutriu de sua própria carne, primeiro derramando o sangue paterno, depois, unindo-se ao sangue materno. Édipo se vê, assim, por uma maldição divina igualmente gratuita quanto à eleição da qual se beneficiam outros heróis da lenda, arrancado do convívio social, lançado fora da humanidade (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999, p. 82).


Julia Kristeva, em Poderes do horror, recorre ao Levítico para nos ajudar a compreender que a impureza, em oposição à condição de pureza, se forjou a partir de transgressão de limites. Nesse momento, é possível estabelecer um interessante vínculo entre os temas sugeridos pela nossa pesquisa, que reúnem a limiaridade com desdobramentos da cabeça (o léxico da devoração, na perspectiva derridiana) e a busca humana pela semelhança. Kristeva observa que o distanciamento entre homem e Deus segue um interdito alimentar. Há o que chama de “encruzilhada semântica fascinante” no que se refere ao sema sangue, pois ele se liga ao sema animal e à possibilidade de matá-lo e, por outro lado, se conecta com a vida, com a fertilidade das mulheres e o melhor momento para fecundação (1980, p. 114-116). Ao buscar a relação alimentar entre os humanos e o sangue, a teórica observa que, enquanto o sangue alimenta Deus, a carne exangue fica para os humanos. Assim, modela-se a ideia de que seria preciso tomar distância do sangue, considerando a demarcação de quem pode ou não participar de determinados hábitos alimentares. No Levítico, encontramos uma interdição alimentar que será examinada pela teórica: “E tudo que anda de rastos e tem asas será impuro, e não se comerá” (do cap. 11, v. 13-19 do Levítico ou Deuteronômio, cap. 14, v. 11-18). Modela-se, portanto, um critério de pureza/impureza com base nessas interdições. Animais que se relacionam por mais de um elemento ou pelos três elementos, a saber, o céu, o mar e a terra, ficaram sob a mácula da impureza. Os animais impuros contêm no seu deslocamento a propriedade de se misturar a espaços, ampliando possíveis limites – no caso espaços de habitação. Entre eles, Kristeva menciona os peixes, pássaros e insetos (1980, p. 117).


Os animais serguilhianos despontam com o peso das misturas (as “misturações”) – as sanguessugas nos mostram como se passa da condição de parasita para alguma altura da tela de cinema, mesmo que os cineastas da poética lahar tenham percorrido os escombros. Contudo, os pássaros, que cruzam a trilha dessa floresta sígnica, são aqueles que melhor levam adiante a transgressão de um interdito cuja estrutura compreende uma espacialidade marcada pela separação, pela ruptura. Ao cruzar diferentes elementos – céu, terra e mar – os pássaros, pela velocidade rítmica que imprimem em Hamartía, fazem desaparecer a cabeça. Ainda que não nos reste dúvida de que eles a portam (não será necessário pesquisar em livros de invertebrados nesse caso), essas cabeças esvoaçadas provocam um movimento de fricção com um universo que é desejável acelerar a leitura para não sair dele em devastador estado de escarificação. Afinal, estamos numa avalanche.


Reparem que até mesmo no que a força lahar narradora chama de “lentidões incomensuráveis” desponta o excesso de referências artísticas e conceituais, que baratina o olhar dos leitores, fazendo-os perder a cabeça na revoada desses pássaros migradores. Pelas ondas dos mares de Turner, a dar o ritmo desse fragmento, movem-se os amarelos tremeluzentes e faiscantes de Vincent van Gogh ao lado das montagens visuais de Visconti, que costumam produzir a sensação de que seus atores foram inseridos em delicados espaços de pintura a nos iludir, nós, os espectadores-marionetes hipnotizados por cenários de momentânea e teleguiada eternidade. No contraste dessas zonas em expansão, esbarra-se no sofrido corpo sem órgãos artaudiano, cujo rearranjo das partes produz a sensação de um estranho enlace com a natureza. Dancemos com os pássaros migradores:


[...] existir em zonas de subducção, em deformações compressivas, em alastramentos-de-rifts que verbalizam o futuro presentificável, coexistindo-se em tempos diferentemente incessantes e imóveis (a alma torna-se imortal no voo dos pássaros migradores, nos girassóis de Vincent van Gogh, no mar-fulgurante de Turner, no leopardo de Visconti,… nas velocidades infinitas, fazendo uma cartografia das lentidões incomensuráveis entre as voltagens geodésicas, cosmogónicas, químicas: tudo é intersectado molecularmente pelas superfícies profundas do real inexaurível… do acontecimento, ou será a bricolage da natureza a reaver o dançarino-corpo-pleno sem órgãos?) (SERGUILHA, 2020, p. 490).

Da cabeça dos pássaros sai a voz – essa phônê sem logos de herança aristotélica na poética avalanche vai atravessar deformando as vozes com logos, tornando-as estranhamente incapturáveis, (re)endereçadas a uma natureza-pensamento, onde se perde o sentido de localização e se começa também a perder a cabeça, ou as cabeças envolvidas nessa dança entre árvores, musgos e líquens, cujo vir antes botânico precisará de uma pesquisa à parte. Hamartía oferece uma pista sobre um fio possível do projeto serguilhiano, relacionando-o com um enigmático aforismo de Heráclito, que, embora não mencionado pelos narradores lahars, está sempre em evidência, a saber, o fato de a natureza amar se ocultar (Hadot, 2004, p. 37). Em Hamartía a natureza pensa deformando aqueles que sustentam limites bem demarcados. Voz e fala, limiares tão antigos, por aqui compõem sons distanciados/modificados dos coros gregos, mas sem os excluir, coros metalizados de mundos esquisitos, ainda assim possíveis e estranhamente familiares, segundo inspiração freudiana: “HAMARTÍA produz mundos possíveis feitos de pensamento-natureza, apropriando-se de várias vozes turbilhonantes que buscam o inacessível, as superfícies multiformes, as sombras sonoras, transfronteirando o mundo em fuga, esburacando inteligências sem ecossistema, nutrindo fendas sinápticas” (2022, p. 47). E a voz se deixa descrever pelas forças lahars na sua paradoxalidade a chamar pelo silêncio, o sussurro serguilhiano – na avalanche o grito fica ensurdecido e a paisagem se perde da vista, ao menos nessa cena: “[...] a voz é uma golpeadura silenciosa, exigindo impossibilidades microscópicas questionadoras do animal: tornar tudo num espaço balbuciante de existências que enlaçam linguagens na dispersão do vazio: [...]” (2020, p. 305). Como um diálogo que parece sempre acontecer com Kalahari, excripta emergida do deserto, cujo tema aborda línguas extintas a despontar na voz de uma loba distante do contrato social forjado por um lobo de Rousseau, nessa composição as forças lahars atuam sismicamente entre destroços para nos perturbar de forma contínua. Se Hamartía é uma continuação de Kalahari, defendemos que circula pelas “peugadas” propostas pelo excriptor das escavações no deserto. Há uma cena em que a personagem rítmica esgrimista entra em devir de errância, tornando-se “esgrimista-HAMARTÍA”, dando-nos o contato com uma voz inumana: “[...] a voz do esgrimista-HAMARTÍA é inumana-antimatérica, é uma explosão imperceptível suflada pela barbárie metamórfica: desponta uma amotinação instintual das apoplexias compactas onde navegam as línguas extintas dos povoamentos” (2020, p. 314).


Como encontramos em teóricos da literatura (Maurice Blanchot e Roland Barthes), há em Hamartía um desaparecimento do excriptor. Tornado personagem rítmica nessa composição, o excriptor adquire por aqui o status de um “não escritor”, estratégia narrativa da força lahar a fortalecer esse árduo ofício, sendo nesse caso um trabalho fenomenal, uma vez que envolve o contato com muitas línguas vivas e soterradas, escombros de um dizer que nos chega em ruínas e também pelo canto dos pássaros, que, na música, retorna nas experimentações de Olivier Messiaen. Descobrimos que a personagem rítmica nos dá, pelo seu avesso, essa excripta; Hamartía desenvolve a aptidão de metamorfosear-se em outras línguas. Já não há língua-mãe, tudo se mistura e sai de bocas cujas vozes não necessariamente emitem enunciados traduzíveis para os humanos:


HAMARTÍA é o não-escritor porque se faz tuaregue-de-multidões-em-minoria-mundo, uma língua perfuradora, uma língua cristalina fundadora de FLONA porque torce, combate e destrói a língua-mãe, eis o cavalo-matricida a ziguezaguear o movimento subordinado ao tempo na multidão incógnita por meio de bifurcantes ritmos impessoais: [...] (SERGUILHA, 2020, p. 132).


Na poética lahar, há cabeças exuberantes em aves de médio e grande porte. Impossível deixá-las passar sem uma breve referência para reforçar que marcam um espaço de semelhança. Tiê-do-Mato-Grosso (2020, p. 219), os Urubus-Carijó (2020, p. 225) e Urubu de cabeça preta (2020, p. 227), esta que, no próprio nome, contém uma cabeça, parece não despertar regozijo humano da semelhança, pelos seus hábitos alimentares, mas em Hamartía, pela observação de seu voo, nos leva para reinvenções em “acontecimentos dos palcos multifacetados” a abalar identitarismos, além de resistir ao “poder axiomático” (2020, p, 227). Na esteira das aves cujas cabeças não passam imperceptíveis, ainda que possam alçar voos impressionantes, a fazer desaparecer suas cabeças, o albatroz, que já estava antes em Baudelaire, por aqui desafia uma certa ênfase no sentido visual, modeladora do nosso pensamento filosófico ocidental, o que permite embaralhar a tendência espiritual da humanidade em busca de uma “visão” relacionada a atingir o âmago das coisas. Perdemos com o albatroz a necessidade de “atingir alvos”, de ver de perto, de capturar o detalhe, o que não implica perder a visão, mas antes produzir efeitos tão amplos quanto borrados – como indicam as forças lahars mediadas pela miopia da ave marinha serguilhiana contaminada talvez pela cegueira de Hamartía, a deixar tudo ressurgir “nos esboços em estado de misturação” (2020, p. 23).

HAMARTÍA fortalece-se ao invadir o real descomunal, fazendo de FLONA um albatroz do espírito dionisíaco, um dançarino da duração dos estados afectivos, da escarificação da loucura de novas semióticas que jamais libertarão o mundo, nem mostrarão a humanidade porque não desejam atingir alvos, nem regular inteligências, nem fazer da erudição uma fiada de vida, elas penetram nas simultaneidades, nas transparências arrevesadas, nas zonas contíguas da aprendizagem que corporaliza intensivamente o mundo sem sujeito, sem objecto, sem centro, sim, as potências disruptivas-FLANARES accionam-se através de correntezas problemáticas sígnicas, de inventos impessoais, de fracções múltiplas, de intervalos movediços onde todas as afluências ressurgem nos esboços em estado de misturação (SERGUILHA, 2020, p. 23).


O poeta lahar “príncipe da altura”, na herança de Baudelaire, mas também encantador das serpentes, nas pegadas de D.H. Lawrence, nos lança para a garça-moura, a maior das garças do Brasil, que nos atravessa para dizer algo diferente do albatroz, ou o que pela imensidão do céu de Baudelaire não consegue ser dito porque é já uma outra forma de fazer misturações. As garças-mouras lahars são solitárias, elas erram em “tentativas de excriptas” e “saberes órfãos”, reavivando leituras do barroco na sua relação com o que Mario Perniola chama de “efeito egípcio” (2009, p. 119-120), civilização que justapõe o antigo e novo, abrindo-os ao que ele reconhece sob o nome de “contradição”. A poética lahar já está num tempo “sem pirâmides”, e, embora se alimente do “sistema permutativo”, que está na base da intercambialidade percebida por Perniola (2009, p. 122), excede os binarismos apontados pelo teórico. Há alguma coisa, nos “rastos flanar”, que não se acomoda nos pares, sobretudo nos binarismos por ele indicados: alto e baixo; masculino e feminino; luminoso e tenebroso; a vida e morte; o orgânico e o inorgânico. Essas aves propõem migrações que abalam camadas soterradas de excriptas, interferindo no tempo presente, que por aqui se atualiza em escorregadias metamorfoses a produzir a sensação de errância e misturações ritmadas por elegantes asas que percorrem espaços impuros:

[...] as GARÇAS-MOURAS desdobram-no infinitamente entre todas as línguas extintas, mas os seus rumores heráldicos ainda acompanham as vozes eremíticas-guerreiras-hemisféricas de FLONA e uma escrita de várias escritas resvala metamorficamente sem literatura, são tentativas de excriptas de saberes órfãos de uma arte egípcia que impulsionam os brônquios interpolados dos corpos até o des-povoado do perpétuo regresso dos virtuais encarnados nos rastos FLANAR onde arquivistas do saber aberrante alcançam os alvoroços do impensável por meio de grandezas móbiles sem pirâmides (voltagens intuitivas curvam-se entre vizinhanças cristalinas e personagens estéticos): [...] (SERGUILHA, 2020, p. 402).


As aves de pequeno porte aparecem em Hamartía para sinalizar uma cabeça que parece perder o seu espaço: sanhaçu, saíra-amarela, cambacica (2020, p. 425), rolinha-roxa, Inhambus-chintãs (2020, p. 428) e escalador-Tangará (2020, p. 534). Uma cabeça perdida? Não ausente, antes uma cabeça que diminui do corpo-pássaro, uma cabeça de anu-preto a nos levar para os “Espaços-tempos-hipnóticos” (2020, p. 349). Uma cabeça pequena de voo ligeiro; a sugestão que inviabiliza a captura de semelhanças evidentes. Assim como o não-escritor compõe Hamartía através de suas forças sísmicas que marcam a ausência difusa daquele que escreve sendo atravessado por vozes do tempo crônico, a personagem-rítmica FLONA emblematiza a impossibilidade de um rosto empático a ser encarado, ambiciona uma experiência radical, ou mesmo em direção ao (im)possível – a excripta da total imperceptibilidade:


FLONA não se vê, um turbilhão não se vê, a casa não se vê, um animal não se vê, um corpo não se vê: eles não têm existência objectal. O vazio não se vê, não pode ser representado porque estamos presos às perspectivas, às conjecturas, tudo é expresso por meio de enxertaduras-FLANARES que derivam completamente imperceptíveis (SERGUILHA, 2020, p. 131).


Não à toa, FLONA encontra na pequena ave irerê essa cegueira fechada de quem voa ligeiro por ser leve e pequena. Por rasgar o céu de forma a sugerir imperceptibilidade, “o IRERÊ mostra os afectos inumanos de FLONA” (2020, p. 352). Somente uma ave com o rosto em desaparição poderia nos dar a ler o inumano, a confundir-se com o “não nascido de nós”, ou essa “voz do silêncio” – ainda que, em outros momentos, sugira hibridismo; na cena a seguir, refere, a exemplo do que já relatamos a partir do gado Mithan, o desenho de “olhares incomensuráveis” ou de limiares cujas fronteiras habitam cabeças/rostos em apagamento. Por aqui os limiares, que podem ter seus começos de dentro e começos de fora, nos enredam, leitores estonteados, pelas vozes esmaecidas de visões faladas. E não se sabe de onde partem, embora sejamos trespassados pelo discreto vir antes de um animal. Na cena que vem, seguimos o silêncio do irerê, a abrir passagem para a nossa voz, já modificada inclusive por outros cantos de pássaros:

o IRERÊ escuta-nos sem murmurar, necessita do não-nascido-de-nós, o reencetar das capturas dos mundos sensíveis, seu des-aparecimento é já a voz do silêncio que faz parte da interrogação do insulamento perante os olhares incomensuráveis entre os ecos espaço-temporais e as permutas impensadas do delírio absoluto: o gesto encarcerado na palavra tenta apagar a visão falada nos rostos das fronteiras: IRERÊ emancipa a dor-aplacada nas palavras de FLONA que denegam as barreiras das elevações dos rituais das águas em quebraduras, em deambulações incontroláveis porque cavalgam sobre todas as enxertias de atractores estrangeiros, de interfaces fractalizados, de esferizações anamórficas, de mudanças simultâneas: dizem: virtualizações abíssicas, dobraduras algorítmicas, hibridismos neurológicos a povoarem a crueldade dos corpos que ficam por trás das des-possessões do pensamento (as vozes diversificam-se ao enunciarem línguas fora dos sujeitos: o real recomeça na sua própria fala feita de travessias renovadas ininterruptamente): [...] (SERGUILHA, 2020, p. 353).


As forças lahars narradoras acenam para a nossa transmutação (2020, p. 353) a acontecer por meio do irerê, pelo elemento fogo, espalhando o que é da ordem do indizível – cabeças em perdição em línguas que não habitam mais os sujeitos, mas os atravessam. O irré, tão aparentemente frágil quanto inapto para giros narrativos de maior fôlego, atinge, no entanto, com o seu canto, espaços intersticiais nobres da poética avalanche: “é o canto de IRRÉ a erguer-se nas linguagens entre-mundos dos sonâmbulos” (2020, p. 357). Na tentativa de escapar ou de expandir os impasses da limitrofia homem/animal, o poeta lahar recua até chegar aos sussurros dos mundos sonâmbulos. Ter um corpo atravessado por sussurros, murmúrios de aves pequeninas, de cabeças em desaparição, não deixa de ser um gesto narrativo respeitoso diante daquele que vem antes.



Descomeço: na trilha dos interstícios


Pintura de Niura Bellavinha. O jardim da cor – o sedutor (1992). Pigmentos, aglutinantes, acrílica, óleo e água destilada, 230 x 230cm.


Buscamos nos afetar com os animais serguilhianos seguindo trocas conceituais que se encontram principalmente no seminário A besta e o soberano, de Jacques Derrida. A noção de semelhança que acompanha o conceito de limiaridade ganhou destaque em nossas aproximações entre a filosofia da Desconstrução e a poética Laharsista. Do gado Mithan, para os animais rastejantes até os pássaros, nos seus diferentes tamanhos, perseguimos uma cabeça que se torna menor – a desencadear a desafiadora conversa proposta a partir das leituras realizadas por Derrida. Será que a poesia avalanche de Luís Serguilha, cercada de limiares porosos, as misturações, mantém a cabeça de seus animais, mesmo quando eles parecem destituídos dela? Foi uma pergunta que nos instigou. Será que, num processo de deslizamento da cabeça para outras formas, ou mesmo a busca do informe, ainda há espaço para sentir? A cabeça surge, é preciso voltar a sua dimensão ética, porque nos oferece um rosto e consequências que esculpem imperativos, a nossa eticidade, a nossa permanência entre “semelhantes”. Para além da fundamental herança de Lévinas, Derrida estende a necessidade de expansão da semelhança e seus efeitos de cuidado para todos os viventes – o que implica uma mudança conceitual que afeta especialmente áreas híbridas entre a Filosofia e a Literatura – como localizamos nas composições de Luís Serguilha.


Como escrever sobre alteridades, deslocar-se para outras formas de vida, respeitando zonas de contaminação e abismos que parecem, à primeira vista, incontornáveis? O excriptor de Hamartía devora temas filosóficos, desestabiliza-os ritmicamente, recria-os em mundos sonâmbulos, promove vertigens nos leitores através da profusão de microconceitos, modela um conceito poético que reaparece como assinatura em suas excriptas – o animal-poema – que, diferente de se estagnar na referência tradicional da descrição do animal ou tentativa de capturá-lo, o eleva a conceitualizações num mundo em transformação técnica. Serguilha inscreve-se, portanto, numa incomum experimentação poética pensante. Vozes do pensamento despontam em todos os seus livros, desde os filósofos e cientistas da tradição até os contemporâneos.


Chegaremos ao intersticial por meio do opérculo e de epifragmas, que não mais têm um compromisso com a cabeça, mas estão no caminho dos vínculos com a escrita do outro.


Ao escrever sobre o tema da animalidade, José Gil, por exemplo, ocupa-se da busca de um permanente devir, que é por ele observado no pensamento deleuziano e a respeito do qual poderíamos questionar a sua defesa de que “O homem aprendeu a sentir através dos animais” (2019, p. 57). Como seria possível sentir através dos animais e ao mesmo estar em puro devir? Segundo a leitura de José Gil: “Devém-se rato para atingir uma velocidade e um ímpeto que induzam necessariamente outros devires. O objetivo é a transformação, o puro devir, e tudo o que venha obstruir, reduzir ou imobilizar, já não faz parte do processo de devir-animal” (2019, p. 57-58). Esse argumento soa caro àqueles que se dedicam a escrever sobre animais. Obviamente que não está em pauta defender o retorno à imitação dos animais, analogias ou mesmo a sua representação a partir de formas corporais, que correspondem inclusive ao que o filósofo José Gil, na leitura do devir-animal em Deleuze, nos sintetiza como algo a ser superado. No entanto, na poética serguilhiana, algumas coagulações imagéticas acontecem e somos levados ao confronto com as limitrofias lahars propostas pelos seus narradores incomuns. Resta alguma cabeça nos répteis, que convida a um deitarmo-nos sobre o solo beckettiano para sentir que estamos atrás de um rosto sem voz – uma cabeça que incomoda porque vem antes, porque está justaposta a efeitos de uma guerra nuclear a nos horrorizar, expondo-nos tanto a uma perda da cabeça, leia-se perda do bom senso, quanto a um sentimento de vergonha: como restamos depois dessa tragédia? Nesse caso, eclode um sentimento de vergonha ainda mais intenso do que o narrado por Derrida ao ver-se nu pelo gato.


Subsiste alguma semelhança na miudeza, há vozes no limite da indiscernibilidade no canto de pássaros de Hamartía, mesmo quando as cabeças diminuem drasticamente diante do pequeno porte das aves ou de voos ligeiros que as fazem rasgar o céu em gesto de quase-desaparição. Nesse exemplo acentua-se uma interessante proximidade com o conceito de devir-animal deleuziano relido por José Gil, a tocar no que ele observa sob o nome de “zona de crítica de ‘“indiscernibilidade’” (2009, p. 58): “Lembremo-nos, n’A Metamorfose de Kafka, da barata que continua a falar como um homem num corpo de insecto – quem fala assim, o homem ou o insecto, Gregor Samsa ou a barata?” (Gil, 2009, p. 58). Quantas vezes, entre aves lahars, não sentimos esse embaralhamento de um fora adentrado, nos ecos entre mundos sonâmbulos, outros em ruínas de germinação, a produzir efeitos de alucinações auditivas? Há vozes de variadas bocas humanas, não-humanas, de animais, a se misturar com balbucios longínquos de viventes que esgarçaram fronteiras até um limite em que o sentir-pele e o léxico da devoração entram em questionamento.


Entrar em contato com as tensões advindas da limiaridade acerca da escrita do animal potencializa a experiência do sentir. A criação poética parece emergir da experiência do afetar-se, e foi Derrida quem buscou na tradição a trajetória semântica da palavra paixão ao se aproximar de O instante de minha morte, texto híbrido de Maurice Blanchot, que narra testemunho de uma experiência-limite. Para o nosso deleite, aqui está, numa lista que abarca a paixão romântica e a paixão de Cristo, a sétima trajetória da semântica dessa palavra que nos dá um caminho para a (in)definição da literatura:


Enfim, sobretudo, “Paixão” conota padecimento de um limite indeterminável ou indecidível, lá onde qualquer coisa, qualquer X, por exemplo, a literatura, deve tudo sofrer ou suportar, padecer de tudo precisamente porque ela não é ela mesma, não tem essência, mas somente funções (DERRIDA, 2015, p. 37).


Escrever o animal, deixar-se tocar pelo animal-poema proposto pelo excriptor, encontra conexão profunda com esse “tudo sofrer ou suportar”, recuperado por Derrida. Não há animal-poema sem abertura para escarificações profundas, que reverberam em muitos corpos: daquele que escreve, daqueles que são escritos pelo poeta, as personagens rítmicas, daqueles que encontram o texto, os leitores. E a nossa suspeita recai sobre a necessidade de um invólucro-pele para entrar em contato com essa experiência tocante e devastadora. A poética lahar nos assalta desde ondas sísmicas violentas, convoca-nos a uma percepção para formas indefinidas, contornos esmaecidos, manchas indeléveis, que produzem efeitos de choques, traumas gigantescos, a jogar com os limiares do que pode ser sentido por um corpo-leitor. As forças lahars querem nos levar para sensações ínfimas nas quais a nossa pele tende ao desaparecimento, mas ela está lá. No ensaio “Excriptura-acósmica-laharsista!”, flagramos o desafio de um desaparecer entre um corpo cortado pela anestesia da morfina. Resta aqui um animal esfolado pela dor:


Excriptar é desaparecer na morfina dos hemisférios dos ofícios sem esperar retorno, sem esperar os rebocos das fendas baptismais, transplantando exclamações da tremenda lucidez sob locomotivas acesas de pensamento: hospícios irrefreáveis, carnaduras espirituais aglutinam-se, se espalham adentro de correntezas concomitantes e anónimas para tentarem dilacerar o possível poema entre agramaticalidades musicais, ciladas etólogas e espelhamentos quebrados do phaneron (SERGUILHA, 2017, p. 85).


O abalo das fronteiras serguilhianas, por exemplo, tece intensificações que, à semelhança e diferença de Deleuze, José Gil e, por caminhos de Derrida, os quais detivemos a nossa atenção durante esse percurso, problematizam o fluxo das forças que atravessam os entes. José Gil, ao entrar em contato com o híbrido a partir do devir-animal, incidirá sobre a “desestruturação da forma e da função” (2009, p. 58), apoiando-se sobre a pesquisa das partículas, do que ele reconhece como “intensidades microscópicas”, que, no ensaio dedicado aos animais, encontra inspiração nas “corpora simplicíssima”, de Espinosa, constituindo as “unidades últimas do mundo físico” (2009, p. 63). A inspeção das partículas passa também pelo debate da sugestão do animal abstrato, segundo Saint-Hilaire, que, conforme José Gil, produz analogias que não são as tradicionais, que não escoam em formas, mas constituem analogias de forças, que são medidas pelo “impulso e combinação de movimentos” (2009, p. 68). Por meio da memória filogenética e do mecanismo de contração, é possível reconhecer que carregamos um animal abstrato e por isso podemos devir-cão, borboleta etc. No entanto, José Gil faz questão de retomar uma ausência que, no início de sua argumentação parece que será, se não respondida, ao menos encaminhada no final de sua análise. Reconhece o filósofo o seguinte: “Deleuze não especifica nunca o devir do lado do animal; nos vários exemplos que apresenta escreve sempre que o animal, cão, cavalo, lobo ou ratazana, devém “outra coisa”. Poder-se-ia julgar que o animal entraria num devir-humano, mas Deleuze visivelmente não o quer dizer” (2009, p. 60). Apesar de não sabermos a resposta, a discussão de Saint-Hilaire em torno do animal abstrato, somada à sugestão acerca da imaginação no devir-animal, já avança no tema. E, no fecho de seu ensaio, a Ode Marítima, de Fernando Pessoa, e sua “imaginação corpórea” são evocadas para chamar os poetas para a discussão.


Nessa perspectiva dos estudos animais que traz à cena a necessidade da faculdade da imaginação ao lado do que pode ser pensado por um poeta, não podemos deixar de convidar para a parte final desse debate interminável algumas notas breves sobre a noção da imaginação simpatizante, desenvolvida por Coetzee, em A vida dos animais. Coetzee dá vida a uma personagem do meio literário, Elizabeth Costello, uma escritora, avó, vegetariana, ativista dos direitos dos animais, palestrante apaixonada e intempestiva, para nos dizer que é possível pensar sobre o tema da animalidade desde a poesia. Assim, Costello propõe uma noção que envolve a faculdade da imaginação. Trata-se da imaginação simpatizante. Para compreender o uso da imaginação, precisamos retomar brevemente a sua proposta em torno do que designa sob o nome de “invenção poética”. Segundo Costello, cabe àquele que escreve “poder penetrar” ou “perceber com o pensamento o ser de outrem” (2002, p. 43). Nessa linha, a escritora explica como foi possível dar vida a uma personagem que de fato nunca existiu, o que a permite estender a sua imaginação criativa, próxima do que chama de “invenção poética”, para outros modos de vida, diferentes da humana: “Se sou capaz de pensar a existência de um ser que nunca existiu, sou capaz de pensar a existência de um morcego ou de um chimpanzé, ou de uma ostra, de qualquer ser que participe comigo do substrato da vida” (2002, p. 43).


A noção imaginação simpatizante modela-se mediante observações em torno de poemas que tematizam a animalidade. “A pantera”, de Rilke, é evocada para preparar o terreno da formulação pretendida pela escritora-pensadora. Nota-se que o tema do limiar, que compreende a relação tensa entre animais e humanos, já fora por nós mencionado no seminário de Derrida, que propôs relações entre a limitrofia e a espacialidade mediada por grades e chaves, segundo os espaços dos jardins zoológicos e dos hospitais psiquiátricos. Costello nos mostra que o espaço poético também é atravessado por grades – como acontece no poema de Rilke. No entanto, a escritora ambiciona algo além dessas grades, se isso é possível, ou se podemos encontrar “devires” zoológicos mais intensos daqueles despertados pela pantera rilkiana. Para Costello, a diferença acontece nos poemas “O jaguar” e “Um segundo olhar para o jaguar”, de Ted Hughes. A escritora compara a pantera com o jaguar. Os poemas mantêm o espaço das grades do jardim zoológico, mas ela observa uma diferença sutil que se estabelece na visão do animal de Hughes. Costello, para distanciá-lo da pantera de Rilke, ao dizer que a visão do jaguar “não é desfocada”, nos dá a ler uma cabeça ou um rosto. E acrescenta: “seus olhos perfuram o escuro do espaço. A jaula não tem realidade para ele, ele está em outra parte” (2002, p. 60), ao passo que a pantera de Rilke permanece nos “círculos concêntricos”, “narcotizada” (2002, p. 60). Ted Hughes, que percebe essa “outra parte”, faz uso da imaginação para se aproximar minimamente desse animal que guarda semelhanças com a nossa humanidade. Não se trata, no entanto, de cair simplesmente em semelhanças de formas humanas, mas antes de tentar entrar em contato com forças, como também sugere Derrida em seu seminário A besta e o soberano. Em Coetzee/Costello, as “forças” não recebem a capa teórica das ciências, ainda que Costello reconheça que a “a força de seus músculos o leva a um espaço de natureza muito diferente da caixa tridimensional de Newton” (2002, p. 60), e o que ela pretende parece um tanto próximo de uma investigação que está tanto no desdobramento do devir-animal de José Gil (inspirado inicialmente por Deleuze), que inclui em sua análise o pensamento poético a respeito da faculdade da imaginação, quanto no jogo de forças subjacente à leitura derridiana da semelhança sobre o tema da limiaridade na relação com a animalidade:


[...] deixando de lado o aspecto ético de enjaular animais de grande porte –, Hughes tateia em busca de um tipo diferente de ser-no-mundo, que não é inteiramente estranho a nós, uma vez que a experiência diante da jaula parece pertencer a uma experiência de sonho, uma experiência ocorrida no inconsciente coletivo. Nesses poemas conhecemos o jaguar não pela sua aparência, mas pela maneira como se move. O corpo é na medida em que se move, ou na medida em que as correntes de vida se movem dentro dele. O poema nos pede para nos imaginarmos nesse jeito de se mover, nos pede para habitar aquele corpo (COETZEE, 2002, p. 61).


Habitar um corpo implica entrar em contato com o movimento desse corpo, permitir-se, para dialogar com a poética lahar de Luís Serguilha, experiências de escarificações a partir do envolvimento com essa vida movente. Costello menciona as “correntes de vida” que participam desse corpo, que nos fazem retomar a necessidade do afetar-se derridiano na experiência poética pela via da paixão de um “tudo suportar”. Alcançamos com maior facilidade esse espaço de imaginação simpatizante quando a conexão com uma semelhança ligada ao padecimento se aproxima da nossa dor humana. O gado Mithan, cobras, lacraias e pássaros, apesar de cabeças de diferentes tamanhos, ainda sintonizam com semelhanças, atravessadas por forças, que despertam em nós, humanos, movimentos empáticos – algo tênue do devorar e ser devorado habita o fundo desses nossos semelhantes, atiçando posições em torno de imperativos éticos. Afinal, pulsa a vida do outro através daquele que escreve e daqueles que o leem. Tais cabeças aproximam-se do que Costello chama de assumir “o registro de compromisso” com o animal” (2002, p. 61). Esses animais e suas cabeças reforçam o deslocamento da questão da limiaridade para o “Can they suffer”, de Bentham, que foi recuperado por Derrida, estremecendo uma discussão que girava exclusivamente em torno da linguagem. A poética serguilhiana, no entanto, ao inscrever-se diferenciando-se ao lado de exuberantes animais da literatura brasileira como “O búfalo”, de Clarice Lispector, ou a onça, de Rosa, em “Meu tio o iauaretê”, para citar o mínimo entre vários exemplos notáveis que devem ser lidos à luz das especificidades de cada morada ficcional, abre passagem para de-formações que, se não questionam um afetar-se mediado pelo invólucro pele, pelo menos expõem a superfície ao limite. Como afetar-se diante de um movimento-lahar a abalar radicalmente os revestimentos, os contornos, que permitem a intensidade empática com os animais?


Na poética avalanche, há cenas nas quais somos levados a contínuas deformações, dismorfoses, anamorfoses, tentativas de desestruturas a capturar o informe, a ambicionar o aformal. As forças lahars serguilhianas nos expõem ao que é difícil de imaginar, mesmo quando as cabeças estão presentes, nos lançam para um universo criativo onde não localizamos muitas vezes imagens em nosso repertório de animais, somos arrastados ao que está em movimento de transmutação, ao que é longínquo. O excriptor Luís Serguilha nos deixa em permanente estado de vertigem – somos jogados ao fundo sem fundo – questão que nos ocupou a partir da leitura de Derrida do fragmento deleuziano acerca do abismo e da liberdade atribuídos especialmente aos homens, em Diferença e repetição. Derrida despertou em nós a busca pela possível fascinação que pode estar no animal e esboçamos, por meio das sanguessugas lahars e suas minúsculas cabeças, um possível fascínio misterioso a despontar na voragem da avalanche de Hamartía. Esse fascínio foi encoberto porque pode ultrapassar o dos humanos, o que faz implodir a soberania, o jogo de forças que alicerça a humanidade, mas também porque, se seguirmos parte da leitura giliana do devir-animal, a de que eles estariam em constante devir, perdemos algo da duração do horror que pode estar na constatação do fundo sem fundo vertiginoso daqueles que nos antecedem e sequer falam. Perdemos assim o esgarçamento demorado e as lentidões das fronteiras entre humano e animal. A personagem rítmica FLANAR, modificada em verbo do infinitivo, percorre poeticamente o caminho do fundo sem fundo de Schelling, lá onde cresce a vertigem e os viventes flanam em espaço nebuloso, que alguns escritores tentam transformar em palavras através de “línguas estranhas-fugitivas”:


(a palavra modifica-se sempre no ponto problemático do olhar-sonoro, ritmado por abíssicos sentidos: vertigens alimentadas por línguas estranhas-fugitivas: intraduzíveis istmos para lá das linguagens que confrontam os encontros das imagens em cavalgadura no olho-do-explorador, fazendo tapeçarias expressionistas no mundo falso, FLANAR no sentido acontecimental onde a imagem se movimenta insanamente sem estruturação corporal) (SERGUILHA, 2020, p. 495).

Por essa trilha pouco usual em leituras sobre a animalidade, nos afastamos, em alguma medida, do caminho indicado pelo devir-animal à luz de um puro devir e nos conectamos com o animal no abismo. O interstício, já referido pela análise do professor pesquisador Luís Adriano Carlos, em ensaio de referência para os estudos serguilhianos, intitulado “Prosódia da prosa”, nos dá uma chave para um caminho de leitura que não cai no puro devir, uma vez que busca na tradição poética e filosófica caminhos intersticiais para a análise do longo poema Kalahari. A crítica de Carlos serve de inspiração para leituras de outras composições serguilhianas: “Estamos perante um tipo de texto em que, para usar uma frase do capítulo 2, ‘tudo acontece nos interstícios”’ (2015, p. 54). Nessas camadas, que retornam em Hamartía, Carlos defende o argumento de que a poesia lahar acontece por meio de um ritmo: “O ritmo desta prosa excessiva é o lugar dinâmico onde o movimento físico e o movimento mental se coligam para criar um sentimento de percussão que cria uma batidade que se soltam as explosões de energia nervosa acumulada no organismo do poeta e na fisiologia da linguagem” (2015, p. 56).


Há um coração que se deixa ler na poética lahar. Curiosamente, há um coração na proposta da imaginação simpatizante defendida por Costello: “o coração é sítio de uma faculdade, a simpatia, que, às vezes, nos permite partilhar o ser do outro” (Coetzee, 2002, p. 43). Há um coração no ensaio “Che cos’è la poesia?” de Derrida, a nos dizer sobre ferimentos e feridas na experiência poética (1992, p. 307), a ser acompanhado de um ouriço, a fazer o “nascimento do ritmo, para além das oposições do dentro e do fora” (1992, p. 306). Há, portanto, um corpo pulsante, a ser escrito em estudos por vir, que desencadeia esses movimentos empáticos. Na poética lahar, as personagens rítmicas não se apresentam por meio de eventuais carnalidades, e as forças narradoras não se ocupam com descrições que poderiam criar vínculos com espelhamentos de uma realidade ficcional à luz de experiências perceptivas encerradas num modo de existência com os efeitos exigidos pela manutenção de um universo pátria e família, com as suas funções previsíveis, pois a Estética Laharsista busca, em diferentes composições, escapar das condutas viciadas em hábitos e regras estabelecidas pelo sensório-motor. Em A Actriz, A Actriz: o palco do esquecimento e do vazio (2020a), a personagem rítmica Actriz, que reenvia a uma figura feminina, se revela, no entanto, mais complexa e escorregadia do que já poderia estar esboçado no misterioso corpo feminino, tematizado pela narrativa tradicional: “O corpo da Actriz não é histórico, cria o impossível com pulsões da etologia em transbordância” (2020a, p. 23). A recusa descritiva pela recognição vem acompanhada de longas críticas ao que as forças lahars chamam de “homem”, personagem antagonista da liberdade avalanche cujo corpo reflete as prisões que impedem dar vida aos ritmos vesânicos não apenas da Actriz, mas de um feminino, para além de uma protagonista-lahar, que se expande para afectos espinosistas, e que sempre estiveram à espreita do quê pode um corpo:

O homem tolheu o corpo, nadificou o corpo com a memória-passadista, com as origens fantasmáticas, disperdeu, anestesiou os feixes de forças que transpõem o corpo, encortelhou-se entre os trilhos verticais e os horizontais, está alicerçado na historicização. Afastou a alma do corpo, afastou do corpo as cosmovisões derivadas, os rombos das intersecções de golpeaduras permanentes, o afecto da alegria (SERGUILHA, 2020a, p. 217).


Se voltamos à Actriz é porque podemos ler Hamartía como uma espécie de continuação de problemas que retornam ao lado de outros cenários, temas que se justapõem e conversas que soam infinitas. O corpo da Actriz, por exemplo, reaparece diferindo-se nas personagens rítmicas de Hamartía, a incluir a própria Hamartía transformada em errância de forças descarnadas, os escaladores, os esgrimistas, a série de animais, Flanar, FLONA – para citar algumas, seguindo pegadas daquela que vem antes e, ao lado da personagem Palco, nos dá uma chave para abrir a porta do hospício ou as jaulas dos jardins zoológicos. O corpo da Actriz busca o que encontraremos talvez com o voo dos pássaros em Hamartía: “experimentar o estranho insaciável do corpo, a diferença hebefrênica, o indeterminável, mergulhar nas voltagens do desconhecido, resvalar com as forças puras do instante que se estiliza nas várias maneiras de viver o durável” (2020, p. 31).


Um corpo está a rondar a Estética Laharsista, e a escrita do animal depende do acesso a ele, reconhecendo que se trata de um corpo em transformação. Nesse momento de pesquisa, abrimos um discreto espaço para iniciar uma conversa, a ser continuada, sobre o vínculo entre corpo e animal a partir da sugestão de uma dança de peles a compor camadas intersticiais nos corpos do excriptor, das forças lahars narradoras e de seus leitores em busca de experiências-limite. Assim, pensamos a pele como algo que pode ser separado da carne, o que nos ajuda na compreensão da estética lahar, cuja primazia recai sobre as forças e não em suas formas. No entanto, algo resta. O filósofo Jean-Luc Nancy nos explica que pele e carne podem andar separadas. Ele nos chama a atenção para a carne morta que se torna viande (2015, p. 56), atiçando em nós alguma morbidez no retorno do léxico da devoração, o que também contribui para compreendermos sob outras perspectivas a possível diminuição e perda da cabeça. Ao se aproximar do corpo, o filósofo nos põe em contato com um corpo interior, repleto de dobras, de invaginações, de revestimentos, todos inacessíveis aos nossos sentidos. A pele exposta, por sua vez, esse fora, viabiliza contato com a “matéria mundo”, a manter esse interior, que nos é invisível, numa intensa atividade que nos faz sentir e também sente o “dentro do estômago”, “do intestino”, as “palpitações do coração”, as “insuflações dos pulmões” (2015, p. 65). Reparem que resta por aqui um coração! Em seguida, percebemos que o pensamento de Nancy se torna vital para o desenrolar de nossa pesquisa, pois o escorchado, esse é o termo que ele usa, nos dá elementos para entrarmos em contato com a escarificação do animal-poema serguilhiano:


Embora o escorchado conserve a forma inteira do corpo e todas as características de sua atividade viva, sabemos que ele não passa de uma espécie de monstro, robô ou mutante inquietante e repulsivo por exibir o que não foi feito para ser exibido. Exibe não somente o que se mantém escondido sob a pele mas que só se esconde porque toda essa maquinaria deve animar a pele sob a qual ela se movimenta, palpita, respira e metaboliza (NANCY, 2015, p. 57).


Depois dos pássaros e suas cabeças em desaparição, o excriptor nos convida a abrir os poros da “pele” para sentir o opérculo, a fazer perder cabeças, sem, no entanto, perder as peles – pois elas constituem trilhas empáticas, mobilizando as “correntes de vida” para a escrita do outro. O opérculo e os epifragmas, outras formas de ler os interstícios, aparentemente tão fora de um jogo empático, estão aí para serem sentidos pelos leitores lahars. Não se trata mais de ler – criou-se algo heterogêneo a um pacto de leitura, algo que segue uma experiência de transleitura, capaz de imaginar empaticamente revestimentos, membranas protetoras de outros viventes, já não tão próximos da condição humana esculpida por cabeças ou rostos:


transler-absorver-atravessar a palavra-arena nos processos cósmicos, inventando opérculos e epifragmas entre as inundações de rastos sem trilhadores e os acasos da exultação do isocronismo do falhanço, das separações religadas, das energias do descentramento das esfinges, dos resvaladios da dissemelhança, das inumações das gravidades (SERGUILHA, 2020, p. 228).


Atravessamos Hamartía com a imagem de uma crisálida a nos sugerir mais que uma metáfora da nossa transformação, mas a própria metamorfose daqueles escarificados, escorchados pela delicadeza cruel das múltiplas e labirínticas camadas de leitura e da redução das semelhanças com a nossa espécie. Se as cabeças diminuem, o fluxo das forças que atravessam os corpos continua por aí; pode-se pensar que até se potencializa diante da ausência das formas identificáveis. A pergunta de FLONA, na sua transgeografia feita de holopalavras espectrais nos assalta no início da trajetória: “quem somos nós dentro de uma geografia transpoética em transformação de forças variáveis, pulveriformes?” (2020, p. 38). A pergunta não se responde, mas as crisálidas nos dizem que estamos em misturações:


crueldade das crisálidas: há invocações espasmódicas ao cimo dos ímanes das anamorfoses: uma correnteza de fisgas dos amotinadores de exílios e o grito bolboso de Deus torna-se numa exclamação sazonal da natureza): dizem: infecção das actas cerimoniais da saciedade: intensificar os espelhos fracturados das especiarias da vida que se ultrapassam a si mesmas, construindo existências misturadoras de golfos indefinidos (SERGUILHA, 2020, p. 211).


Atravessamos Hamartía com as escritas sísmicas de FLONA, que, ao viver sem destinação, faz transversões “numa convulsão sensorial-imprecisa” (2020, p. 299). Em outra cena, sabemos que FLONA nos atravessa até ao “fora-do-fora” (2020, p. 261) – o que não é irrelevante para o tema da animalidade na tensão com os limiares e formulações criativas empáticas diante de outros viventes. Podemos seguir outra via e sustentar que o excriptor está a romper com todas as formas, ao optar pelo puro devir recuperado por nós há pouco – a não se coagular em nada mais e a chamar para a cena a sua leitura colagem do conceito de “individuações sem sujeito”, cuja inspiração recai sobre recortes de textos de Simondon e de Duns Scotus, somada ao que ele chama de “exceptuações” (2020, p. 30), mistura que poderá intensificar eventualmente, por meio de deslizamentos e recriações microconceituais esculpidas pelo poeta[5], um devir sem qualquer retorno imagético, o que seria um desmanchar da tradição, incluindo as cabeças, a fazer nascer outra escrita, talvez ligada à palavra holográfica e seus aperfeiçoamentos caros a uma estética híbrida amiúde conectada aos gostos e às veleidades do mercado, não mais comprometida com a afetação do invólucro pele para além de um complexo olho-pele[6], não mais tributária de um corpo em transubstanciações crueis como as vividas por James Joyce e Marcel Proust, aqueles que antecederam o excriptor em mutação lahar.


Lendo bem de perto, no entanto, encontraremos, entre parênteses, nos interstícios das micropercepções e das fraturas, algo que resta: “(derivações persistentes das vozes antiquíssimas)” (2020, p. 262). A pergunta de Derrida foi direcionada a buscar o que pode estar no fundo da cabeça (2026, p. 204), no fundo sem fundo vertiginoso dos viventes que não se esgotam nos humanos. A poética lahar de Luís Serguilha também persegue o mesmo tema e, como diz um verso de uma canção inglesa, The long and winding road, que está no primeiro volume de sua Obra poética, as sinuosidades dessas trilhas ecoam em Hamartía através de perguntas que se devem ouvir remotamente quando se retorna dessa vertigem: “o que fala através do corpo?”; “Como somos sussurrados?” (2020, p. 362).

Estamos à espreita, junto com o excriptor Luís Serguilha, nas artérias abertas de um coração que bate no mundo, como um dia escreveu a força protagonal clariciana de Água viva num espaço criativo de mistérios em transmutação. O coração vibrátil do poeta, das forças lahars narradoras, das personagens rítmicas que os atravessam e de seus leitores vesânicos, como um imenso coro, bate em tremenda fricção com os viventes próximos e longínquos, com e sem cabeças, com e sem rostos, em abismais fascinações fascinadas, diante do vertiginoso fundo sem fundo no qual fomos lançados. Há uma borboleta a dar o tom entre as ruínas regerminativas da experiência da Estética Laharsista, sugerindo um outro começo de leitura – a re-começar intersticialmente Hamartía pela batida melancólica do coração tubular das lepidópteras. Há uma “borboleta merencória” a nos acompanhar pelas trilhas da poética lahar.




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[1] A sugestão do uso do termo força advém inicialmente de nossa pesquisa sobre a pintora- narradora de Água viva, de Clarice Lispector, que recebe dos críticos a designação de “força protagonal”. Discutimos o processo de transformação da relação corpo e técnica no capítulo intitulado “O corpo atravessado pela técnica”. In: Clarice Lispector e Julia Kristeva: dois discursos sobre o corpo, 2008, pp. 218-397. [2] O poeta criador da Estética Laharsista tece algumas considerações sobre o Laharsismo, para a Revista Guará, no texto intitulado “Fragmentos da estética do laharsismo”, 2014. [3] As personagens escaladoras de Hamartía encontram ressonâncias no mundo pós-catástrofe da peça de Beckett intitulada Fim de partida, na qual a personagem Hamm diz: “Precisávamos é de uma cadeira de rodas de verdade. Com rodas grandes. Rodas de bicicleta (Pausa). Estamos colados à parede? (Beckett, 2010, p. 71). [4] “Digamos sim ao que chega, antes de toda determinação, antes de toda antecipação, antes de toda identificação, quer se trate ou não se um estrangeiro, de um imigrado, de um convidado ou de um visitante inesperado, quer o que chega seja ou não um cidadão de outro país, um ser humano, animal ou divino, um vivo ou um morto, masculino ou feminino” (Derrida, 2003, p. 69). [5] O Laharsismo invade a cena como um mosaico de microconceitos ou de colagens plásticas conceituais, ao estilo do barroco por vir, onde o poeta Luís Serguilha, inspirado por diversas fontes da Arte e do Pensamento e de múltiplas vozes estranhas, faz regerminar, no interior do excesso dessa experiência, de-formações do pensamento que levam a novos modos de existência poética. [6] Curiosamente, Derrida, ao retomar no seu seminário sobre animalidade um texto de base teatral de Valéry, “A noite com o Sr. Teste”, contribui para essa discussão que atravessa a pele, mas por aqui se detém no que resta da cabeça. O personagem, cujo nome anuncia uma espécie de testemunho da humanidade, sendo também uma espécie de marionete, anuncia que “a bestice não é o seu forte”, o que, na leitura derridiana desencadeará uma série de perguntas em torno da “cabeça”, ampliando a discussão para o rosto e em seguida expandindo a noção “cabeça” para além do seu vínculo estreitamente humano. Nas palavras do filósofo: “[...] é a partir dos exemplos sem conceito da bestice que se começa talvez a pensar o que é uma cabeça, e, sem dúvida, um rosto, olhos, uma boca, lábios, uma língua, dentes etc. Pode-se dizer de um vivente sem cabeça que ele é capaz de bestice? Talvez a bestice não seja o próprio do homem nem dos viventes em geral, mas a possibilidade de todos os viventes que eu chamaria capitais, os únicos viventes que têm, com um sistema cerebral ou nervoso central, uma cabeça, um rosto, olhos e uma boca. Isso não quer dizer todos os viventes e todas as bestas, mas isso diz respeito, porém, a muita gente. Isso concerne a muitas bestas e a mais cabeças, muito para além da humanidade (Derrida, 2016, 276-277, grifos nossos).




Luciana Abreu Jardim é professora de literatura na Universidade Federal do Pampa. Doutora em Teoria da literatura pela PUCRS, Pós-doutora pela UFRGS, licenciada em Filosofia e bacharel em Comunicação Social-Jornalismo, pela PUCRS. Desde 2011 atua como professora colaboradora do Mestrado e Doutorado em História da Literatura, da FURG, dedicando-se a orientar pesquisadores e ministrar disciplinas relacionadas à teoria da literatura.

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