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“Sacrifício e outros contos”, novo livro de Francisco de Morais Mendes, por Eneida Maria de Souza

Atualizado: 10 de nov. de 2021

Um contista minimalista


A trajetória literária de Francisco de Morais Mendes, embora tenha se iniciado na década de 1990, não poderá ser considerada uma produção robusta. A publicação de Sacrifício, em 2019, pela editora Gato Bravo, de Portugal, vem se somar aos três livros de contos, Escreva, querida (1996), A razão selvagem (2003) e Onde terminam os dias (2011). Mas o lento espaço de tempo reservado às novas produções indica, sem dúvida, a qualidade do texto e o cuidado com que o escritor demonstra no culto à sua elegante e fina linguagem. A escrita não contém arroubos vocabulares, clichês literários, expressões esdrúxulas, retórica livresca ou marcas de algum dialeto local. Nesse sentido, seria equivocada a tentativa de inserir sua obra num grupo específico de escritores mineiros de sua geração, por desviar-se de critérios que pudessem limitar a natureza ímpar de seus escritos. Escreve para um público-leitor de literatura, independentemente de sua origem, lugar ou país. O prêmio a ele concedido em Portugal por Sacrifício comprova o alcance internacional atingido pela obra, por se notabilizar tanto pela escolha dos temas quanto pela dicção sofisticada e imparcial da escrita.


A opção pelo minimalismo ressoa não só na economia da linguagem, nos enredos enxutos e curtos dos contos, no aprimoramento dos títulos de cada peça, não excedendo nada que fizesse romper com a proposta de miniaturizar as histórias, retirando-lhes efeitos melodramáticos. Na condensação rarefeita da escrita e na atenção obsessiva em descrever detalhes de cenas e emoções, constata-se o olhar atento do observador/leitor, do escritor voyeur que, à distância, vai construindo tipos e personagens. Nos dez contos que compõem o volume, a síntese desejada acentua-se na harmonia criada entre os títulos, cada um resultando em primoroso resumo de ficções que a vida vai desfiando.

Uma das mais evidentes características dos narradores de Sacrifício, também presente em outros livros, é a construção narrativa que revela o escritor-leitor de literatura e de crítica literária, sem que tal recurso o afaste das qualidades de ser um bom contador de histórias. De feição irônica, citem-se a apropriação de personagens, escritores, conceitos literários e procedimentos de construção fantástica de muitos contos, tais como em “Teca”, ao remeter ao conto de Murilo Rubião, “Teco, o coelhinho”; “Quinta-feira, 17, por volta das 18 horas, com chuva”, quando Henrique, doente, pretende visitar os lugares pelos quais Vila-Matas percorria, em Barcelona; “Autópsia”, de enredo pautado pela discussão sobre os caminhos tortuosos da autoficção, resultando numa saborosa narrativa, zombando dos modismos conceituais em voga no momento.


A predileção do escritor por temas relativos ao culto dos livros, aos vendedores de sebos, leitora de peças de teatro, músicos e especialistas em herbário, restaurador de livros, biblioteca sem livros, escritores citados em suas leituras, revisor de textos e autor de cartas eróticas encena a produção de seu arquivo imaginário/ literário. Algumas narrativas empregam procedimentos ligados ao suspense, embora deixem o leitor à espera do desfecho satisfatório nos contos. Esta é uma das técnicas narrativas do livro, ao conseguir distanciar-se do gênero policial, embora utilizando-se desse recurso de modo metalinguístico. O primeiro texto do volume, “Sacrifício”, constitui verdadeira lição do estilo ficcional de vida da personagem, enriquecida pelo estranho hábito de achar dinheiro na rua. A gratuidade das ações e a venda de livros como forma de doação e de dispêndio, retrata uma das funções da literatura, atividade que descarta ganhos e se alimenta do prazer da escrita e de sua leitura. O ofício repetitivo e sem intenção de lucro de procurar dinheiro nas ruas evoca, de forma original, a superioridade do desejo e a inutilidade do acúmulo de bens. O homem comum, a vida sem apelo às realizações regidas pelos grandes feitos. Neste diapasão, “A duração”, em que a continuidade da coleção de plantas do herbário do avô, e a herança das composições do músico estariam ou não fadadas ao esquecimento? O destino da literatura teria, talvez, o mesmo fim?

As personagens retratadas, sejam elas movidas pelo acaso ou desprovidas de um ideal burguês, poderiam compor a galeria dessas pessoas comuns, sem grandes sonhos ou ideais. Povoando o cotidiano de cidades sem caracterização local, encarnam desejos recônditos, traições, cujas atitudes muitas vezes atingem o nível do delírio, causado pela doença ou a incapacidade de se safar de situações embaraçosas. Reside aí o artifício usado pelo autor na construção imaginativa de seus contos. Escritos na primeira pessoa, com exceção de poucos na terceira, percebe-se a entrada da fantasia nas narrativas, seja quando a personagem de Murilo Rubião salta de um de seus contos; seja quando Vila-Matas surge como o escritor a ser visitado por Henrique, a reclusa e imaginativa pessoa em permanente jogo ilusório com a escrita, cujo nome evoca o duplo de Enrique Vila-Matas; seja a encenação, no velório, de uma situação em que de desconhecido do morto a personagem é vista como amigo, a farsa atuando como componente ficcional e teatral.

Gilles Deleuze já afirmara ser a literatura o reino do delírio, por lidar com o devir-outro, o fora, considerando ser a terceira pessoa a enunciação indicada para a produção literária. Escreve-se sempre na terceira pessoa, embora o emprego da primeira seja um dos artifícios comuns da ficção. Mas o importante a assinalar nessa afirmação é a necessidade de afastamento do sujeito na escrita, uma das condições mais rentáveis de se conceber a literatura, à medida que o escritor, ao se entregar à criação, tem a capacidade de experimentar e de se transformar em outros. Distanciando-se do mimetismo pessoal, da confissão e da empatia, a linguagem torna-se estranha a si própria, deslocada e em constante movimento. Não seria essa a proposta do texto de Francisco? Ou da própria literatura? Projetar no papel experiências captadas nas histórias de personagens, retiradas aqui e ali do cotidiano, das leituras feitas, de ações capazes de produzir efeitos inusitados e irrisórios, anotações esparsas como no texto final, “Sugestões para começo, meio e fim”? Laboratório da escrita, esboços de textos, reinício de outros? Reino do inacabado, do precário e do fugidio?

Ao leitor, a imensa satisfação em poder usufruir desta armadura neutra, pensada e atraente de Sacrifício. Sem nenhuma dor ou tédio.



Eneida Maria de Souza

Professora Emérita e Titular da Universidade Federal de Minas Gerais



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