José Edward Lima
Raras foram as vezes em que tive a oportunidade de ter contato direto e pessoal com o nosso já saudoso jornalista, escritor, crítico literário e pensador João Paulo Cunha. Entretanto, leitor voraz que sou de (quase) tudo o que diz respeito à arte e à cultura, sempre mantive encontros semanais com ele, por meio de suas sempre brilhantes resenhas publicadas no caderno de cultura e no suplemento literário-cultural Pensar, do Jornal “Estado de Minas”, que ele editava magistralmente. Mais recentemente, degustando seus engajados e brilhantes artigos no jornal Brasil de Fato, de orientação petista.
A alma generosa do João
Me lembro que um dos meus “encontros” com JP Cunha ocorreu por telefone. Entrei em contato com ele para agradecer a publicação, no Pensar, de uma extensa resenha de autoria do poeta e ensaísta Anelito de Oliveira, editor desta não menos relevante Sphera, sobre o meu livro “Pátria Que Pariu & Outros Poemas”, então recém-lançado. Como soe, a crítica feita pelo não menos instigante Anelito era bem afiada, destacando virtudes (poucas) e defeitos (muitos) daquela minha obra. Me senti lisonjeado não apenas pela crítica balizada ter vindo do Anelito, um baluarte da literatura brasileira, mas também por ter passado pelo crivo, sempre crítico, do João, um dos mais ilustrados pensadores da cultura mineira e nacional.
Nossa conversa telefônica foi rápida, mas muito afetuosa. Ele teceu alguns comentários sobre a referida resenha e disse, ao final, que os espaços do Pensar estavam sempre abertos para minhas eventuais contribuições. Infelizmente, acabei trilhando outros caminhos, que não a literatura, e acabei me privando de ocupar o espaço que João, generosamente, me oferecera.
A visão de mundo do João
Outro contato marcante que mantive com JP Cunha se deu em uma situação bastante adversa. O ano era 2012 e, na época, eu era superintendente-adjunto de imprensa do Governo de Minas Gerais, na gestão do não menos brilhante, em sua área de atuação, Antonio Anastasia. O motivo daquele meu contato ocorrera em função de um artigo de JP Cunha, publicado no Pensar, no qual ele desancava o formato do Circuito Cultural Praça da Liberdade, uma iniciativa do Governo de Minas, que concedeu a empresas privadas a utilização de vários dos prédios históricos que compunham a Praça da Liberdade, para a instalação de museus e centros culturais.
João abominava a concessão, naqueles moldes. Argumentava ele que, na realidade, o que estava ocorrendo era a privatização dos prédios públicos, que passaram a atender menos ao interesse público e mais ao marketing cultural das empresas concessionárias, que, na sua visão, eram descompromissadas com a produção e a democratização da cultura. Já no título do artigo – “Circuito Empresarial” – ele deu o tom da sua visão de mundo.
Por dever de ofício, fui encontrá-lo para ponderar que os contratos de concessão previam o acesso irrestrito para a população em geral, sobretudo para artistas, “fazedores de cultura” e estudantes de escolas públicas. Mas ele não se deu por convencido. Fiel ao seu estilo provocador, voltou algumas vezes ao assunto, sempre em tom crítico.
Conversamos internamente no Governo e decidimos que, ao invés de ficar questionando seus artigos sobre o Circuito, melhor seria chamá-lo para uma discussão pública sobre o assunto. Dito e feito. O debate, batizado com o sugestivo nome de “Circuito Cultural ou Empresarial?”, ocorreu dentro do projeto Café Controverso, no Espaço TIM UFMG do Conhecimento, que, ainda hoje, integra o conjunto de centros culturais e museus da Praça da Liberdade. JP Cunha de um lado e, de outro, o então gerente executivo do Circuito, Carlos Gradim. A discussão “pegou fogo”, mas, no final, entre mortos e feridos, salvaram-se todos.
Mais recentemente, em 2015, o conjunto, que atualmente, é composto por 33 instituições, foi rebatizado apenas como “Circuito Liberdade”, sem a palavra cultural. Tal mudança de nome teve, certamente, as digitais da polêmica em torno das destinações do Circuito, suscitada por JP Cunha três anos antes.
A erudição sensível do João
Em seus artigos, JP Cunha conseguia sempre a proeza de conectar sua inaudita erudição com a realidade nua e crua do seu (nosso) tempo. Me lembro, especialmente, de um deles, publicado em 2013 no Pensar, no momento em que o Brasil foi tomado por estridentes manifestações populares que questionavam a realização da copa do mundo de futebol no país, sob o grito de guerra “Não vai ter Copa”. Intitulado “Política contra a Pólis”, o referido artigo dava uma aula sobre como a exacerbação da política interfere – muitas vezes de forma deletéria –, naquilo que João chamou de “reino da economia”. Argumentava ele: “Tem gente que acha que a política acabou(...). No entanto, o que fica cada vez mais claro em todo o mundo é que a economia não apita nada, sendo mero reflexo de decisões políticas, ainda que invisíveis e pouco democráticas”.
Para ilustrar sua tese, JP Cunha valeu-se de vários exemplos concretos, dentre eles uma decisão que tinha, então, sido tomada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) para proibir o trânsito de grandes veículos de carga nas estradas mineiras durante os dias de jogos da Copa do Mundo. A justificativa era de que se tratava de “medida reguladora para uniformizar a fiscalização”. JP Cunha não perdoou: “Se você não entendeu, caro leitor, não está sozinho. Trata-se de uma inversão de prioridades: o funcionamento da economia fica em segundo plano em relação ao evento esportivo”. E foi além, colocando o dedo na ferida: “A Copa do Mundo e sua realização no Brasil têm sido alvo de dezenas de decisões afins. (...) Para que a Fifa, uma empresa privada, pudesse lucrar sem impedimentos, foi liberada a venda de bebidas nos estádios, aprovadas obras sem discussão pública, mudadas regras de tributação isentando empresas estrangeiras, entre outras. Agora querem resolver a questão das péssimas estradas mineiras fechando as cancelas.”
Na conclusão do artigo, JP Cunha fez uma analogia surpreendente e, como sempre, ilustrada – a qual me permito transcrever aqui na íntegra: “Num filme dos irmãos Marx há uma cena impagável em que um deles, ao arrumar a bagagem para viagem, se vê com pedaços de roupa sobrando fora da mala. Não pensa duas vezes: pega a tesoura e decepa mangas de paletó e pernas de calças. O puxadinho legal que está sendo feito para acochambrar os esbirros da Copa se parecem, em essência, com essa solução ‘marxista’. Já que a lei atrapalha, é só cortar uns pedaços e depois remendar lá na frente”. Nada mais João Paulo Cunha!
Comments