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Foto do escritorRevista Sphera

"Oduvelar", um drama negro de Fausto Antonio

Atualizado: 10 de nov. de 2021

Peça em três atos


Foto: Mário Cravo Neto



Personagens:

Guardião | Jamal | Pai | Voz do oráculo | Teatro



A Prefiguração do cenário


Cena dentro da cena ou o metacenário

Abre-se a cortina e, diante do portal das velas, soam matracas ancestrais.


Guardião (Fala com o propósito de abrir o portal)

Sete pedras num moinho; nove bocas nas sete quedas o sangue numa pira.

Abre a boca do Oduvelar e a da nossa sina, abre?


Voz do Oráculo (Responde ao Guardião e, após o verbo oracular, a cortina é descerrada lentamente)

Era noite e a boca engolia tudo. O céu e a terra eram o alimento que crescia como duas bocas que só comiam e comiam. A mãe e a filha estavam no jardim do tempo e das quedas. Sete pedras num moinho; nove bocas nas sete quedas o sangue numa pira. Quem partiu antes do tempo gerou silêncio e choro profundo. Quem ficou até o fim dos tempos carregou nas costas a boca imensa e no seu trânsito abriu o portal, que era um espelho dobrado e, nele partido, apenas os riscos de sangue e fogo agindo na noite e no dia entrelaçados pelo sangue e fogo. A fulguração perdida num beijo tomado da mãe e da filha, que da fome delas só o sangue refluía num insinuado e proibido afago, que era o medo que atraia a vida e a morte na boca que crescia num escuro e na luz divisava, além da mãe, a filha, que era a noite e a boca que tudo engolia. Não era o pai quem tudo comia e nem a mãe que engolida comia. A boca e a fome eram a filha que era comida e comia. A fome era a Vaníssima; a mãe e o pai, o Descalvado; o sangue que a filha amava e comia.

Cenário

Aparentemente estamos numa loja que vende velas. As aparências enganam. Trata-se, a serviço de um valor icônico, de um lugar mágico e responsável pelo trânsito ou passagem da vida terrena para outro plano. As velas, de cores variadas, ficam dispostas num imenso balcão circular.



Primeiro ato

(Luz bem centralizada)


Jamal

Passei para levar a vela!


Voz do Oráculo

Aquela lâmina ardente.

Fogo da eternidade, a noite e o dia

na arca do tempo. (Para o discurso e fica em total silêncio, só depois dispara ou retoma a fala)

Lâmina, Guardião? Quem acende o fio desse gume?

(Retorna, depois de respirar e olhar fixamente o Guardião e Jamal, ao texto denotativo e de modo direto)

Ele passou para levar a vela!

Aquela vela, Guardião, fome sem boca, ele pode levá-la agora?


Guardião

O corpo está frio?


Jamal

Bem frio. E a vela, posso levá-la agora?


Guardião

Há apenas uma vela!


Jamal

(Olha, indignado, o balcão e a prateleira repletos de velas)

Mas há milhares de velas aqui! (Aponta o balcão circular e bem no alto a prateleira)

(Exaltado) Por que apenas uma vela?


Guardião

(Com tom irônico e meio didático)

As velas são numeradas, o seu pai receberá, pelo que fez em vida, apenas uma e com um número. Mas até o momento a vela dele, aquela numerada, não chegou.


Jamal

(Levemente transtornado) Não é possível. Mas não chegou por quê?


Guardião

Ninguém sabe a razão!

E quem sabe, Jamal, se há alguém que sabe; não pode compartilhar ou revelar aqui.


Jamal

Mas eu tenho dinheiro para acelerar o serviço. Qual o preço? Pode cobrar, pago o valor de cem mil velas.


Guardião

Eis a questão, não existe preço. Agora mesmo um preto, pobre e favelado levou a sua vela.


Voz do Oráculo

Cada um tem o seu tempo.


Guardião

Sim, cada um tem o seu tempo!

(Entrelaça o diálogo com Jamal e a Voz do Oráculo)

Não pagou absolutamente nada! (reforça) Não pagou nadinha!


Jamal

Mas o corpo está frio! Faz horas que ele morreu. Não é bom ... (Titubeia um pouco) ... os parentes reparam. No velório ao lado, acompanham com ritos e samba uma mulher... a vela dela arde há muito. O enterro seguirá no tempo certo!


Guardião

É, bem sei da chama que arde ali!


Voz do Oráculo

Sim e não! O tempo, aquela boca insaciável, água corrente, consome ou come as vidas... (Breve pausa e de modo decisivo arremata) O tempo vai comendo tudo, quem tem tudo, inclusive as existências, é o tempo, que é, na ação contínua e eterna, sim e não; vida e morte no mesmo sopro.


Guardião

Sopro, sim, sopro! (Enfático)

(Dirige o discurso para o teatro e, num giro sobre os próprios passos, repete o mesmo texto para Jamal

Sopro para o nascimento e, num tempo incerto, sopro para a morte!


Jamal

Mas a vela... passe-me uma vela qualquer, não importa o número.

(Revela para o público o segredo, o motivo da insistência) A vela é a condição para ficar com a fortuna do velho, está no testamento.


Pai (Aparece no plano da realidade) Você ficará com a fortuna se conseguir a vela para o meu velório e para o encaminhamento da minha alma, quero ir para o céu, (Numareflexão sinonímica) quero o paraíso! É uma troca; o testamento garantirá os bens, a minha herança, a sua fortuna, ouviu? Traga a vela e rapidamente; apresse tudo, ouviu? Pois onde estou, destituído de forças, não posso trazê-la. (Fala e vai sumindo lentamente até sumir totalmente de cena)


Jamal (Olhando fixamente para o guardião)

Não importa o número. Preciso da vela e de tempo para queimá-la. Está tudo escrito. Você não entende, não é? (Dirigindo-se ao Guardião) Não sabe o que está em jogo. Pois bem, passe-me uma vela qualquer. O samba, aquele rito sagrado e tão nosso, só começa com a vela acesa. Ali, sim, bem na cabeceira do morto.

(Aponta) Eu quero aquela?


Guardião (Numa enunciação de dupla negação)

Não, aquela não!


Jamal

Aquela sim, ela é enorme e brilhante. Aquela vela é azul?


Guardião

Não, ela é branca! (Reafirma)

Ela é branca. Mas depois de acesa ficará azul.


Jamal

Eu quero, é a vela ideal.


Guardião

Aquela pertence ao Raul Barbeiro!


Voz do Oráculo

Na verdade, Guardião, ninguém sabe a quem pertence; eis o mistério dos mistérios.


Jamal

Aquele negro da esquina? (Indaga o guardião a respeito da primeira referência ao Seu Raul Barbeiro)


Guardião

É dele, eu suspeito que sim, mas ele não morreu! (Reposicionando o discurso)

Não morreu ainda! Ainda! Mas é dele.


Jamal

Ele tem mais de noventa!


Guardião

Cada um tem a sua hora, ninguém vai antes. E a vela é dele. (Meio em dúvida) Tudo indica... mas...


Jamal

Vou levá-la mesmo assim!


Guardião

Não é possível, ela desaparecerá no caminho! E antes de virar pó, você sentirá nos ombros o peso da vida dele. Aqui a vela não pesa nada, mas no caminho ela será um fardo.


Jamal

Não é verdade. (De modo firme) Vou levá-la e pronto!


Guardião

Muitos já tentaram! É como viver a vida alheia, compreende? E voltaram com as mãos vazias. Existe um rosário de mistério, não basta apenas a vela... (É interrompido)


Jamal

Vou levá-la e pronto. (Com certa decisão e arrogância)


Guardião

Não posso impedi-lo... (Reflete)

Não, não posso mesmo!


Pai (Aparece no plano extrafísico)

Não sou insano, fiz o inventário considerando a morte. A vela é o preço para a vida... (Insiste) é o preço para a vida que continua. (Constatando a sua condição pós- morte) De alguma forma a vida continua. (Sai do plano da memória de Jamal e da cena)


Jamal

A vela, então! (Recebe do Guardião a vela)


Guardião

Pode levá-la. Mas não esqueça o que disse: cada pessoa tem a sua. Assim que você pisar ali (Aponta o lugar) A vela sumirá totalmente e, assim que chegar ao velório, ela voltará ou não.


Jamal

(Com a vela ainda visível) Decadência e morte, meu pai, eis aqui (Gira sobre o próprio corpo) o triunfo! (Fala mostrando a vela) Não é um símbolo? Não, é a realidade. Estupenda! (Refere-se à vela) Tomara que queime lentamente. (Fala para a imagem do pai segurando a vela)


Pai

(Fala pretensiosa) Vou me sentar no mais alto trono do mundo! (Tom de ordem, certa arrogância) Jamal, ande com a vela e procure colocá-la no lugar determinado. Sem a vela não há o rito; não há o sepultamento, pois bem, acelere!


Jamal

Mas você não poderá, mesmo que ela queime, se libertar da morte. (Diz o texto olhando para o pai)


Pai

A morte ... (reflexivo) preciso superá-la.


Jamal

Mas não é possível. Ouvi vozes que conspiravam!


Pai

Vozes atadas pelo medo das velas escoradas. Será?


Jamal

Ouvi vozes também !

Voz do Oráculo

Vozes escoradas pelas pedras,

espremidas pela dor.


Guardião

A condenação remetida para o chão

Olhos e pedras alinhados! Olhe ali! (Aponta o chão e as velas queimando) São as velas daqueles e daquelas que não passaram aqui para retirá-las no ato ou após o sepultamento.


Jamal

O que elas dizem?


Voz do Oráculo

Sou feito de imagens!


Guardião

Há antes a identificação, imagens envoltas por palavras. Palavras e imagens que revelam os mortos. As velas que queimam são pessoas. Cada vela é um retrato em tempo difuso dos que passaram; elas refletem também o futuro deles; dos mortos, não é? (Refaz o discurso) As velas retratam o presente, o passado e principalmente o futuro!



Segundo ato


Cenário

Uma encruzilhada e no centro estão os personagens em ação. Há quatro ruas visíveis; os caminhos abertos ou oferecidos como escolha para o trânsito da história e dos protagonistas.


Voz do Oráculo

Será que a vela retirada é realmente aquela destinada ao Raul Barbeiro? (Deixa no ar a dúvida)


Guardião

Ninguém leva a vida alheia, não é, Oráculo? (Interroga de modo a deixar a indagação, mesmo assim, sem resposta)


Jamal

Sei que tenho a vela aqui. (Mostra a sua localização e a vela não é mais visível)

Qual o caminho mais curto? Tenho pressa! O sepultamento, antes aquele rito do samba e da vela queimando, precisa da minha presença... (Refaz o discurso) precisa da vela.


Guardião

Vamos então, meu caro. Vamos antes que a vela pese mais e mais.


Voz do Oráculo

O primeiro passo é escolher o caminho. É com você, a minha voz é silêncio apenas. Qual o melhor caminho? Depois do primeiro passo não há volta. A água não voltará, o fogo não cessará a sina de queimar e queimar. (De modo enfático) Depois do primeiro passo tudo se precipitará abruptamente, Jamal!


Jamal

Fiz há muito a escolha, vou seguir ... (Aponta a rua) Não! Já não sei bem! (Titubeia e desfecha) Vou seguir para o outro lado, aquele caminho (Indica a direção), o inicial, era bem mais longo.


Voz do Oráculo

Aquele caminho era mais longo?

Sim! Mas só tinha, até onde vejo aqui, somente retas; não visualizo nenhuma subida ou descida ali, não é? (Faz a interrogação e no contínuo do discurso reflete) O caminho, como a lua e o sol que virão no céu e no horizonte, abre e fecha o mistério. (Meio reflexivo) O caminho fecha e abre mistérios e, num movimento contínuo dado pelo destino do caminhante, fecha e abre. Sim! Mas não há meios para efetuar, depois do primeiro passo, outro jogo?


Guardião

Agora é só seguir. Não são os passos em si; caso queira ficar aqui parado, (Dirige o olhar e a palavra para Jamal) tudo bem, a vida seguirá o seu curso. Virão sucessivamente a doença, a velhice e a morte.


Voz do Oráculo

Eis ali a subida.

Agora o peso da vela irá num crescendo.


Jamal

(A vela não é mais visível) A vela virou pó! Ou o nada ou tudo, tanto faz! O que move tudo é a própria incerteza. (Constata) Fiz a escolha do caminho e, como o destino permanentemente refeito, estou num círculo de dúvidas. Queria chegar antes e agora tenho de enfrentar sucessivas subidas. Qual ancora de certeza existe após o nascimento? (Refaz o discurso) Após a partida? (Aponta e bate no peito) Há escolha ideal, Voz do Oráculo, para o caminhante?


Voz do Oráculo

Há sempre um véu e outro.

Ao abrir o mistério envolto, Jamal, logo surge outro. Num véu que se abre, você avista a Vaníssima Senhora. Ela, o próprio verbo nas vidas envolto, diz que é véu e véu envolto num outro. Um véu, Jamal, é poesia; o outro, assim que surge, sem socorro, é a boca do encontro com outro destino. (E sentencia de modo solene) Às vezes o fim e, muitas vezes, num sem rosto, a fome e a fome num banquete posto.


Jamal

(Localizando o discurso no espaço)

Agora estou na estrada ou numa senda meio indeterminada. E a boca parece chegar cada vez mais perto. A Vaníssima Senhora está, num véu de vida e morte encruzilhado, na vela, no meu pai que partiu e numa outra vida que, ao me apropriar da vela alheia, pesa profundamente em mim.


Guardião

É o peso dessa Senhora, que ora é vida, ora é morte! (Num distanciamento didático) E no sepultamento, no rito da vela, as duas bocas se falam e uma come a outra.


Jamal

Não ouvi, Guardião, não ouvi a Voz do Oráculo... (Faz o desfecho do enunciado de modo sentido e grave...) e agora sinto a boca e a saliva dela em mim.


Guardião

(Dirigindo-se a Jamal)

Talvez você esteja, quem sabe ou ninguém sabe, carregando nas costas a sua própria vela.


Voz do Oráculo

(Complementando) Carregando a própria vida para entregá-la à Vaníssima Senhora, será?


Jamal

(Reflexivo)

A própria vela! E o que será de mim assim que chegar ao velório? O samba da vela será para o meu velório ou para o do meu pai?


Voz do Oráculo

Mistérios e mistérios, Jamal!

(E revela)

Caso chegue e encontre lá,

como seu pai queria,

a vela queimando; o samba da vela,

aquele rito de despedida ou de passagem,

será o sinal que a Vaníssima Senhora era,

para você, poesia e vida.

E para o seu pai a morte e a despedida.


Guardião

A boca é a fome de sempre.


Jamal

A boca, Voz do Oráculo, é a fome?


Voz do Oráculo

A fome é ela, a Vaníssima Senhora nas bocas!


Guardião

Sim, poesia e morte!

Mas é, na esfinge, pai e mãe e outras polaridades.


Voz do Oráculo

O seu pai tem como contraparte a carne

e o sangue da sua mãe. Mas ele é o pai;

o outro sangue ou a outra boca!

Não é a boca da mãe.

(Organiza, numa pausa, a conclusão)

Não é a boca ou sangue do pai;

é um pai perdido num antigo fosso,

num antigo e esquecido rosto.


Guardião

Caverna antiga e esquecida!


Jamal

(Num texto enigmático)

A boca era, então, o sangue dela em mim;

escuro aberto pelo outro sangue,

aquele outro que é o oposto dela,

a segunda energia no duplo pai;

sangue e oposto, subterrâneo,

múltiplo no pai do amor da mesma boca;

útero retecido em sangue e sangue das duas bocas em mim!


Guardião

Não podemos nos livrar das bocas!


Jamal

Por quê?


Voz do Oráculo

A mãe e o pai estão ali.


Jamal

Na boca que devora tudo?


Guardião

Sim!


Jamal

Estamos próximos do velório do meu pai,

o salão fica bem ali; depois daquela árvore florida.


Guardião

É preciso olhar o seu pai, será que o cortejo

não seguiu para o sepultamento ?


Jamal

Parece que sim! Foi para a cova!

Seguiu sem a vela, será?


Voz do Oráculo

Não podemos afirmar! (Instala-se a dúvida)


Jamal

O que faço com a vela que carrego nos ombros?

(Pergunta ao teatro)

Teatro (Responde num turbilhão de vozes)

(Voz localizada no centro da plateia)

O que carrega nos ombros é o antigo fosso!

(Voz à direita, fundo do teatro)

A rigor, o antigo rosto!

Aquele pai oposto!

(Voz à direita, frente do teatro)

Carrega o sangue do sangue da mãe e o seu oposto!

(Voz à esquerda, fundo do teatro)

Oposto no rosto e no imenso caminho transposto!

Daquilo que era igual no rosto e até no oposto!

(Voz à esquerda, frente do teatro)

Carrega você mesmo e o oposto,

que no sangue da mãe foi morto!

Mas quem é a mãe que é vida e morte?

Não é a mãe das mães e nelas o sangue do seu oposto;

o pai, antigo fosso e amado e repulsivo outro?



Terceiro ato


Cenário

O cenário é composto de quadros sucessivos. O velório é o primeiro; na sequência a ação cênica se desenvolve defronte de uma árvore mítica. Por fim há o retorno para as velas e para o ponto inicial da peça.


Primeiro quadro


Jamal

(Diante do corpo do pai)

A sua vela estava ao seu lado ou sobre o seu ombro

como um dos braços que se estende em cruz;

como o outro que se encaixa. Assim, suponho, estou livre.

Não há dinheiro que pague o sopro e a chama! Tudo feito e tudo desfeito. O inventário sem efeito e com ele sem efeito o carvão, que é a vida; o sopro, a chama e envoltas no seu corpo as cinzas, que são a morte, o fim. (Indaga duplamente)

O que diz o Guardião dessas cinzas? O que diz a Voz do Oráculo do carvão e das cinzas, que são o contínuo início e o fim?


Guardião

Agora terá por inteiro o destino.

O carvão é a vida; as cinzas são os ossos e o sangue do retorno.


Voz do Oráculo

O sangue do fim!

E antes o sangue na boca.

Mas nem tudo são cinzas; há o carvão e a vida.

A boca que devora a vida gera igualmente vida.


Jamal

Carvão e cinza, mas onde está o encanto?

Ele passeia apenas por uma boca?


Teatro (Voz feminina)

Não, há muitas bocas e nelas enredados os cabelos!

(Reposiciona o texto)

Amar o cabelo avesso em verso

Em cima, nuvens negras em desalinho;

embaixo, num risco, negras crespas

carapinhas em chamas úmidas, você deseja

o encanto? Aqui há outra boca!


Jamal

Surge, no entre abismo, o risco do desejo!

Mesmo diante da morte fulgura aquém e além

a boca úmida com os cabelos em desalinho.

Teatro (Voz feminina se dirigindo a Jamal)

Fulguram, além da boca da Vaníssima, outros encantos?

Sim, avulta assim a boca de urina, que é encanto;

na outra margem, para a sua boca!


Guardião

São muitas bocas!

(Orienta Jamal)

Agora, que soa o sino, feche o caixão, Jamal!

Feche, pois também é boca, não é?


Jamal (Ainda defronte do caixão aberto)

É a boca numa outra boca!


Voz do Oráculo

Fecha, Jamal, então, as duas bocas.


Teatro (Voz feminina)

Agora está morto o outro.

Jogue as flores e deixe aqui as cinzas e o morto. Finaliza secamente)


Voz do Oráculo

Quem será o outro, que era com a vela

o seu oposto? Aquele outro que era do mesmo sangue;

mas mesmo assim no mundo o seu oposto?


Jamal

Deixo a vela e nela contida a imagem do antigo rosto!

Fica aqui a boca que era o outro; então, em mim, o morto.

Era o oposto; na saga do pai morto emerge o outro.

Assim, ao deixar a vela, no sol oposto, deixei o retrato

(de)formado (Faz uma breve pausa no discurso e conclui vitorioso) do meu próprio rosto.


Guardião

Tudo oposto e feito do próprio morto.

Emergem assim o outro e a boca e, num sopro,

acende a vela, que é no seu ombro o outro,

que o seu filho, no antigo fosso, reconhecerá como outro!

Voz do Oráculo (Numa sentença conclusiva)

Até que você esteja morto!

(Numa ordem para fechar o caixão)

Feche, Jamal, as duas bocas!


Segundo quadro


Ao fechar o caixão, Jamal desliza a cena.

A ação se desenrolará defronte de uma árvore centenária.


Guardião (Apontando a árvore mítica e centenária)

Surgem, então, depois do cortejo, as dúvidas!

É a árvore mesmo que surge diante dos nossos olhos?


A Voz do Oráculo

Não é a fantasia; a ponte vazia. Não! (Fala para o teatro; tudo, num convite ao exercício da imaginação, que criou a árvore)

Ficam no trânsito a margem plástica e o vínculo duradouro;

mesmo que aparentemente se desfaça, do imaginado, o refeito destino.

A árvore é, depois das duas bocas, a porta, passagem ou portal, tanto faz!


Jamal

É o que há de profundo em nós.

(Indaga de modo solene) O destino

é algo imaginado? Quando olho a árvore,

a passagem e o mistério indago: não é uma

condenação; não existe um fecho definitivo?


Voz do Oráculo

Não! Talvez a fantasia caia diante do destino; a imaginação,

Deusa interna, fixada no umbigo-tempo, enuncia a

Saga do sem-fim das eras. A casa não cai e tudo existe eternamente.


Guardião

Eis o destino.


Voz do Oráculo

Não é uma projeção; a fantasia que não suporta a vida e a morte.


Jamal

Oduvelar a vida e a morte, assim se faz e refaz o destino?


Voz do Oráculo

Oduvelar tudo! Absolutamente tudo!


Guardião

A árvore que surgiu aqui, entre as duas bocas, não é fantasia.


Voz do Oráculo

(Fala imponente)

Ela tem raiz profunda, tronco imenso e uma copa arredondada.

(Faz um breve silêncio e olhando para o público fecha o discurso) Cresce na imagem e ação ressonante a árvore-portal.

(Reflexivo) Passa a vida e passa a morte!


Guardião

Passam pela árvore?


Voz do Oráculo

A morte e a vida passam pela boca!



Terceiro quadro


(O cenário é o retorno para o salão inicial repleto de velas. No entanto, não há mais as velas visíveis e sim um portal, fechado, que será aberto pelas palavras de passe, que são acompanhadas pelas matracas percutidas pelo Guardião e repetidas pelo Oráculo, Jamal e demais personagens)


Guardião (Bate as matracas e abre o portal-oráculo)

A matraca é o verbo!


Oráculo

Verbo invertido!

Osso da língua!


Guardião

(Diz um texto de abertura e bate duas vezes, num movimento percussivo alternado e firme, a matraca e solta o verbo)

Sopra a veste que se desfaz em cinzas

De dúvidas no choro de viúvas!

No véu de pétalas mortas!

Nas bocas cindidas em beijos repetidos

(Bate as matracas e repete)

Nas bocas cindidas em beijos repetidos!

(Depois das palavras de passe ou mágicas o portal se abre)


Voz do Oduvelar (De dentro do portal para o teatro)

Recolher a língua, largo sangue,

ofegante ânsia de retalhos!


Jamal (Diante do portal, do Oduvelar vazio)

Furta-se em mim despedaçado osso!

(Com emoção) Aterrado em lágrimas!

Crivos de sangue na mãe antiga; boca

eterna; mãe escura, boca de sangue

num afogado útero.

(De frente para o portal e depois encarando o teatro)

Mãe escura, Vaníssima, boca de urina, que me furta

em ossos, cinzas e mortes.

Mãe antiga que estava nos meus olhos!

Mãe antiga, estavam nos meus olhos

as suas páginas, feitiço inquebrantável,

beijo no escuro. Linguagem subterrânea

sibilante aquém e além da boca que devora

e furta-se em mim o nada dessa página;

céu e sino de partidas!

(De modo comovente)

Mãe antiga, furta-se em mim retornos,

escuros abraços e a removente despedida

erguida em voltas à página vazia!

(Bate a matraca solenemente e encerra o discurso)

Erguida, mãe antiga, em vida e morte!

(As matracas descem, sobem, descem e sobem numa alternância sonora)



Fim



Fausto Antonio

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