Exérese floral: espantos bailarinos para uma leitura em deformação
LUCIANA ABREU JARDIM
Escrever (excriptar) com nervos desumanizadores entre estiletes do delírio-lahar e os
arquivos das reminiscências envolvidas por uma colossal LÍNGULA omnívora, deformada e autotómica: uma língua anastomosada vinda da reperfusão e da ressecção do mangue –
uma LÍNGUA ecdisona em metacrose.
Luís Serguilha, Estética do Laharsismo
Reunião de escritas de décadas de arte e pensamento, o primeiro volume da Obra Poética do excriptor Luís Serguilha reúne três textos basilares de sua escritura esculpida no cruzamento de geografias ibero-afro-americanas. Na abertura do volume, somos apresentados ao longo poema intitulado os esgrimistas de Á-peiron (em vernação), cuja primeira publicação, pela Lumme Editora, do Brasil, data do ano 2019. O segundo longo poema chama-se Plantar rosas na barbárie, apresentando uma primeira versão pela Poética Edições, de Portugal, em 2017 e, posteriormente em meio digital, pela editora COD3S, do Brasil, no ano de 2018. Por fim temos acesso a uma versão alterada e ampliada de falar é morder uma epidemia, inicialmente publicada no Brasil, no ano de 2019, pela Editora Reformatório e simultaneamente em Portugal, pela Editora Busílis. Todos os poemas sofreram alterações e há passagens ligeiramente modificadas e outras profundamente expandidas, até mesmo recriadas, pelas sucessivas releituras do poeta.
A coleção da Obra Poética de Luís Serguilha recebe o nome Arcoboleta, termo emprestado da Arquitetura, indicando as volteaduras características de sua escrita de aproximação criativa com o exuberante e escorregadio estilo barroco. O critério dessa compilação é de ordem temática, e o subtítulo que acompanha o nome da Coleção Arcoboleta (uma ROSA uma LEITORA uma BARBÁRIE) abre-se aos conceitos-moventes que constituem antigas obsessões do poeta – a começar pela experiência leitora, que o persegue desde os primeiros textos, a incluir os poemas da adolescência, o volume Koa’e e o divisor da escrita rumo a profundezas errantes do deserto, o enigmático Kalahari, a desenterrar ritmicamente 31 línguas extintas. Se os textos não obedecem a critérios cronológicos, como usualmente encontramos na reunião de obras completas de autor, não se pode, por outro lado, acusar a coleção de cair na arbitrariedade. Nesse caso, o poeta-pensador de sua obra indica os caminhos de organização de seu arquivo. Assim, como uma costura delicada numa trama urdida por experiências de décadas de escrita incansável, de persistência na contracorrente de um tempo todo feito contra artistas que se insurgem contra os modismos mercadológicos das narrativas palatáveis, e da cultura show do escritor de palanque midiático, Serguilha, excriptor das sutilezas no interior dos limiares matizados de violências sígnicas, radicaliza ao nos oferecer outros modos de ler temas amiúde trabalhados por acadêmicos e críticos do universo literário.
Quais são os temas-obsessão do escritor? É possível reconhecer alguns deles nessa primeira reunião de textos. No recorte inicial de suas composições que compreendem outros tomos em processo de revisão, o excriptor nos expõe a diferentes problemáticas em torno do poema, da escrita, da leitura, do leitor, da leitora, do animal, do corpo, das artes, das ciências, todos envolvidos pela atividade do pensamento. Especialmente em torno da criação poética, apresentada nesse volume inicial, somos iniciados aos estados de delicadeza cruel, de suspensão, da experiência-limite, que se desvelam em constante atrito com fragmentos da tradição da Filosofia, que são recriados por Serguilha, a nos deixar marcas gestuais do seu próprio espanto diante da exuberância sígnica que invade o exercício do impensável.
O ínfimo encontra o corpo do excriptor, que estava à espreita desse mundo que não se deixa capturar: espaços do imperceptível sensível, do interstício mangue-íleo. Nesse entrechoque, o excriptor, em estado de solidão alucinatória, faz irromper geografias desconhecidas. Pelas lâminas de suas mãos cirúrgicas, por onde coagulam modos de excripta, eclodem vazios de vozes a atravessar sua pele manchada por pensamentos fugidios. Os textos de Serguilha contagiam-se pelos ritmos-intercessores da duração, do vazio, da estilização, do pensamento, da singularidade, da loucura, da fala, do caos, das vozes, do anómalo, da linguagem, das palavras, da crueldade, dos signos, da excripta, da ética-estética, da errância, das dobras, da expressão, do olhar, do sistema digestivo, da percepção, do tempo, da diferença, da língua, da solidão, do sentido, das sensações, do inconsciente, do corpo, da animalidade, da morte e da desumanização.
Um início possível, que acompanha como questão o volume de estreia, relaciona-se ao significado da leitura. O que significa ler? Por que os poemas são longos? Há leitores dispostos a essa experiência-limite na qual está em jogo uma brutal transformação das micropercepções do corpo de seus leitores? Como ler os poemas de Serguilha?
São questões que não estou disposta a responder jamais de forma peremptória, apenas compartilhar alguns percursos de leitura. Nesse texto de caráter introdutório, alguns pontos me acompanharam na qualidade de ensaísta, leitora, revisora crítica, uma vez que são perguntas que já rondam leitores em busca de outras formas criativas de estar no mundo da palavra. Em diversas de suas manifestações em universidades brasileiras, inspirado por Blanchot, Proust e Artaud, Serguilha sustenta o argumento de que ler não significa compreender. Nessa perspectiva, como efeito das palestras do poeta dedicadas à leitura, no interior de uma estética da deformação, nota-se que não há regras para começar determinadas leituras densas. Pode-se iniciar pelo último texto, pode-se inclusive entrar abruptamente, deformando pactos lineares de leitura – como uma dança em que o leitor se torna bailarino-coreógrafo” [1]. No entanto, é importante que, passada a curiosidade inicial, se interrompa o lúdico vasculhar dos signos e a aleatoriedade dos passos e se estabeleça uma sequência de leitura, a fim de entrar no ritmo, de permitir ao corpo do leitor a transmutação de uma gestualidade para além dos olhos, do rosto, uma espécie de dança onde se intui a complexidade indispensável para a entrega da leitura e, mesmo sem dispor de um corpo com músculos ágeis, se estabelece algo diferente de um pacto, mas antes um contato de peles sobrepostas, cuja inspiração vem de diferentes signos lábeis, a produzir sismos na experiência leitora. Caberá ao leitor dar espaço a essa experiência, através do próprio corpo, dar vazão a uma crueldade que vem do texto-corpo de seu criador, já deslocado para a escuta-escrita de outras vozes, outras porosidades, outras sensações, outras geografias, outras dimensões de tempo, outras intuições, que fazem desaparecer a trivialidade de seu sujeito pessoal, da própria historicidade em que está inserido. Esgrimar também é dançar. Fazer dançar as palavras para os leitores distraídos, levando-os às extremidades de palavras superficialmente subterrâneas, sombreadas – lá onde as referências se esboroam, a semântica se choca com a enxurrada de signos em constante mutação, ainda que a sintaxe soe estranhamente familiar. O poeta captura as palavras brotando do caos, e a escrita se manifesta num tempo marcado pela condição paradoxal, que frequentemente é chamada pelo excriptor de estado de “pré-catástrofe linguística”, na qual seu corpo radicalmente anorgânico (contaminação artaudiana) se desvela confrontado por uma musicalidade insituável, imprevisível e estrangeira. O que o poeta ambiciona está demasiadamente nos antípodas da formação de leitores. Serguilha pretende deformá-los de modo irreversível, para que, diante de uma musicalidade do não-lugar, do imprevisível e do anorgânico, seus leitores reconheçam os estilhaços dos ecos escritos de vozes e de uma mão que estão sempre por acontecer. Por isso o volume abre com os esgrimistas, para nos trespassar delicadamente com espadas, para nos fazer perder volume do corpo – para nos tirar a forma, para nos esquartejar em gestos delicadamente cruéis enquanto buscamos nos proteger de uma avalanche que nos arrancará os contornos do rosto, realçando o abalo das últimas certezas, na esteira da intensificação da herança nietzschiana.
O tema da leitura, que permite aproximação inicial com essa poética incomum, tem acompanhado os especialistas, os teóricos da leitura, a não esquecer da herança de Wolfgang Iser e de Robert Jauss, cuja recepção no Brasil encontrou análises sociológicas a percorrer outras trilhas do pensamento – um tanto distantes da experiência da Estética desenvolvida pela poética Lahar. Diferentemente da sugestão de um horizonte de expectativa, segundo a teoria da leitura de Jauss, na proposta serguilhiana, ao invés dos horizontes, recebemos expressivas camadas de areia nos olhos, que são devidamente problematizadas em Kalahari, composição que nasce do deserto para nos lançar sobre o desafio das invisibilidades, disseminando enceguecimentos e tramas de areia pelos poemas da Obra Poética I.
Curiosamente, na qualidade de revisora crítica do primeiro volume dessa coleção monumental, me encontro na posição de leitora privilegiada, aquela que testemunha a experiência radical de linguagem. Receber o texto, no caso três longos poemas, para seguir ao lado do trabalho criativo do seu criador como revisora do volume, implica entrar em contato com camadas de tempos sobrepostos, décadas de intensos dias e noites de insônia dedicadas a uma atividade que produz naquele que escreve algo muito distante de momentos de diversão ou de apaziguamento do ser e pacificação de uma dita maneira de estar no mundo. A recusa de todo esse espetáculo leva o autor a intensificar conceitualmente uma forma singular de ser atravessado pela palavra escrita em seus diferentes suportes, a incluir o seu espaço-casa de escrita e a técnica que prolonga suas mãos: canetas, teclados, cadernos, telas virtuais. A revisora, em alguma discreta medida, é também perfurada pelo trabalho de duração dessa escrita pungente, pelo esculpir dos anos da palavra parida através do excriptor. Há nessas composições um reencadeamento de assombros e estiletes a moldar expansões sígnicas em suas potencialidades para o desconhecido, que, pelas mãos do excriptor, deixam espalhar manchas sanguíneas e outras colorações que assumem tons O’Keeffeanos libertários – para nos dizer que o Laharsismo não reside na forma, mas antes na intempestiva deformação dessa experiência-limite. A experiência leitora, sobretudo a de LL da Obra Poética I, que habita zonas obscuras onde forças se relacionam com forças, tenta alcançar esse desconhecido flagrado pela vida excripta-anastomosada-bailarina do poeta.
Tenho a sensação de que a Estética do Laharsismo criada pelo excriptor, cuja inspiração aparentemente leve porque se cria estranha e distante, vinda do javanês, vai modelando seus grandes temas de escrita. Habitar o Laharsismo, essa avalanche, tradução do lahar, produz efeitos sísmicos, perturbadores, fazendo desmanchar certezas cristalizadas, estimulando o contínuo deslizamento dos sobreviventes desse abalo radical em um mundo que está sob constante ameaça do excesso da fricção sígnica, que se escreve desde um corpo brutalmente esfolado pela duração para fora dos relógios, ao estilo da duração de Bergson, de Proust, de Bergman e de Cassavetes, um corpo que escreve, portanto, a partir da fragilidade das limitações que todo corpo carrega. O poeta lahar só escreve porque foi tocado pelo delírio de restar entre escombros de uma excripta-avalanche geradora de tempo.
O poeta como primeira testemunha de uma experiência-limite que o atravessa.
Como revisora crítica, eu me coloco na posição de testemunha. E vem do próprio texto essa sugestão marcante, e não de possíveis tentativas de forçar um contato com projetos de pesquisa já consolidados de grupos de estudos muito bem articulados sobre essa temática. Há uma passagem de Plantar rosas na barbárie em que é dito o seguinte: “não há poesia sem uma prática testemunhal do horror” [2] (Serguilha, 2022, p. 307). Como revisora crítica, percebo que sou uma testemunha inicial, que sofre as primeiras escarificações da palavra em movimento, sou aquela que entra em contato com a experiência de dor que atravessa o corpo do daquele que escreve, percorre o corpo do narrador e de seus personagens, que o escritor prefere chamar de personagens rítmicas, inspirado pelo impacto das pesquisas musicais de Olivier Messiean, até alcançar, posteriormente, os corpos dos leitores por vir.
Observo que não é uma experiência confortável a de tocar no corpo inesperado e impensado do poema, depois de ele ser envolvido por essas camadas de forças clásticas e lávicas, simultaneamente caóticas e rítmicas.
Não se testemunha esse horror, quando se entra na Estética do Laharsismo, sem também ficar um pouco ou ainda mais enceguecida, para além do que já foi esculpido pela minha própria existência. Não à toa, nessa estética as forças narradoras, que eu chamo de forças narradoras lahars, para me afastar do sujeito ou do eu-lírico e suas tendências contemporâneas eminentemente egóicas, buscam uma leitora cega. Sim, eu sou essa leitora de miopia nietzschiana, que é convidada a testemunhar o que se desenha, nas palavras do excriptor, como um testemunho do horror, mas também o testemunho da ordem da exultação e da paridura da palavra. Vamos a um fragmento acerca da importância dessa cegueira na estética lahar, especialmente para a experiência da leitora:
(...) uma LEITORA-microscopicamente-cega e enxertada pelas fuselagens das vesículas ofídicas está intervalada nos devaneios-dos-testemunhos dos cavadores geotérmicos que a religam ao indecifrável-larvar feito de interiores-atravessados-de-coexistências anamórficas (Serguilha, 2022, p. 272).
Reparem que a palavra testemunho participa dessa condição de cegueira que é dada à leitora, sendo acrescida da necessidade de intervalos e somada à experiência dos devaneios. Em outro momento, é o próprio corpo do poema que é envolvido pela cegueira: “Um poema fica em risco nas superfícies inesperadas do corpo indecidível que tenta dizer o não-sentido ao gerar cegamente, mimicamente, monstros residuais por cima das ossaturas de um tempo por acontecer” (Serguilha, 2022, p. 309). A despeito das diferenças no uso da linguagem, podemos aproximar a Estética Lahar, ou Estética Avalanche, de um texto de Blanchot intitulado O instante de minha morte, que narra o testemunho de uma experiência-limite. Blanchot escreve nesse texto o fato de ter conseguido escapar de ser assassinado por nazistas na Segunda Guerra. Esse “quase” acontecimento instaura em sua escrita um mal-estar por ter atravessado um limiar impenetrável, o de tocar com o verbo um outro lado, o lado inatingível da quase-morte. O relato de Blanchot não se encaixa nos gêneros literários tradicionais, podendo ser aproximado de um conto. No entanto, Derrida nos mostra em Demorar que as fronteiras entre ficção e a suposta vida se esgarçam nesse relato, abrindo-se para uma espécie de contaminação do par, o que gera a problematização do gênero testemunho, fazendo, assim, ruir uma certa morada fixa para a qual temos a tendência a retornar quando estamos diante de um texto ficcional. A categoria do estrangeiro, que acompanha a vida e obra de alguns pensadores da filosofia da diferença, a exemplo de Jacques Derrida e Julia Kristeva, também participa da estética proposta por Serguilha, que nasceu em Portugal e vive no Brasil há mais de 15 anos, por onde tem percorrido 18 estados entre cerrados, pampas, mangues e geografias amazônicas. Ao aproximá-lo desses pensadores, inscrevo a estrangeiridade do escritor, que trabalha o texto para escapar de pertencimentos fáceis.
Não é a minha finalidade, na poética avalanche, levar essa breve apresentação a discussões sobre gêneros híbridos. O que gostaria de trazer à cena a partir do encontro Blanchot/Derrida está na recuperação que o filósofo faz da trajetória semântica da palavra “paixão”, que se manifesta nesse texto híbrido de Blanchot, e que abarca tanto a paixão romântica quanto a paixão de Cristo, alcançando, na sua sétima trajetória semântica, o que pode ser lido como um possível caminho para a in-definição da literatura. Cabe nessa aproximação do Laharsismo com a desconstrução a paixão voltada à literatura que, nas palavras derridianas, “deve tudo sofrer ou suportar” (Derrida, 2015, p. 37).
O excriptor lahar afeta-se pelo corpo do poema – aí está a sua paixão vertida em linguagem poética. O que o faz afetar-se advém desse encontro caleidoscópico com a experiência cuja inspiração, em muitos momentos, está em Blanchot e que busca o “fora adentrado”, um encontro atravessado pela fricção de múltiplas vozes, pelo entrelaçamento sígnico, vibrátil, pelo desassossego das “tapeçarias geodésicas”, pelas frestas voláteis das transgeografias cósmicas, marcadas pelos campos de forças de corpos, pelos intervalos, pelos interstícios e pelos verbos no infinitivo e no gerúndio. Recorto uma passagem desse “tudo sofrer ou suportar” referido por Derrida, agora em linguagem serguilhiana, que ultrapassa qualquer leitura voltada à flagelação, não tendo relação com o culto ao sofrimento. A poética Lahar busca regerminação criativa. Eis um fragmento que nos leva a ler a paixão insuportável do efeito de uma avalanche, a começar pela fratura delicada causada pelo poema. É por meio da insinuação do efeito de porosidade que o corpo do poema atravessa a linguagem como um osso desgastado, para logo em seguida fazer derreter a solidez das rochas e dissolver possíveis processos de subjetivação nas faces dos humanos:
Um poema porosamente derrama geologias, perfura, dissolve rostos, desobstrói devaneios, auscultações dos anervismos, apaga traços, produz cisão ao debulhar vértebras verbais, emborca a linguagem com o inconcebível, produz diéreses, rasgadelas de astenoses, traqueias inóspitas que tangenciam o subtil, o inominável, o indefinível com os alambores do anómalo: um poema vaza, extenua, deslaça o in-sonoro das palavras, rouba o tempo, estrondeia, cauteriza, dispersa e reforça o real, faz falar a cegueira (Serguilha, 2022, p. 90).
Entrar em contato com o corpo do poema implica reconhecer a necessidade da noção “animal poema”, elaborada por Serguilha desde pelo menos a publicação de Koa’e, livro de sua adolescência. Por meio do animal poema, que ocupa um espaço expressivo na sua trajetória de arte e pensamento, vamos encontrar microconceitos que passam pela tradição filosófica, incluindo pensadores de diferentes períodos até a filosofia contemporânea. No ensaio para a Revista Sphera, intitulado “Limiares do animal poema em Hamartía” [3], escrevi sobre o impacto desse conceito serguilhiano, que encontra ressonâncias com o pensamento da tradição filosófica aristotélica, a debater com as contribuições de Jacques Derrida, Gilles Deleuze e José Gil, incluindo aspectos das inestimáveis reflexões de John Coetzee através da personagem Elizabeth Costello, em A vida dos animais e da força protagonal de Clarice Lispector em Água viva. A partir de abordagem que se irradia ao sabor das imensas flores de Georgia O’Keeffe, na expansão regerminativa e vertiginosa de suas cores espasmódicas, busquei, em Hamartía, algumas semelhanças e sua dissolução entre as espécies, com base na aproximação das cabeças entre o par homem/animal e o léxico da devoração. Na abordagem da limiaridade desse par, encontro, no argumento derridiano de A besta e o soberano, um enfoque a ser considerado. O filósofo reconhece que o par em questão é permeado de um campo de forças, que, na minha leitura, está em sintonia com a poética Lahar. A escrita de Serguilha, para além do rosto e até mesmo da cabeça, ou seja, muito além da humanidade, se inscreve sobre o cuidado em relação aos viventes em geral, incluindo o reconhecimento das forças daqueles estigmatizados pelas deformações, a chegar até ao inacabamento do corpo e ao monstruoso.
A escrita serguilhiana, à luz do estilo barroco a ser repensado no interior de suas composições insólitas, dialoga com as diversas referências textuais místicas, tais como, São João da Cruz, Sor Juana de la Cruz, Santa Teresa d’Ávila, até chegar a expoentes da poética sul-americana do porte de Lezama Lima, Severo Sarduy, Haroldo de Campos e Affonso Ávila. Encontramos nas composições de Serguilha, ao lado de possíveis diálogos intermináveis com esses escritores, também fecundas interferências com a pintura e a escultura. Bernini, por exemplo, marca um espaço de excesso, consolidado especialmente por Lacan, para nos falar da falta no Seminário XX, que tanto nos faz pensar sobre o feminino e seus caminhos singulares, os quais não se reduzem à condição da mulher, podendo habitar textos, para citar alguns exemplos, de Lautréamont, de Artaud, de Joyce – a nos levar para sedutoras intertextualidades com a poética avalanche de Serguilha. Diante do barroco que observamos despontar na poética do excriptor, há, no entanto, diferenças substanciais, que podem indicar um caminho instigante para repensarmos uma série de temáticas e de recepções em torno da escrita poética a partir de vislumbres despertados pelas artes visuais. Não se trata de estabelecer conexões com a crítica vigente, mas de tentar se aproximar do que conseguimos capturar quando nos permitimos viver essa escrita lahar para além de uma erudita e oportuna ressonância com a avalanche referida por Baudelaire (considerando a poesia um gênero onde eclodem imagens e inevitáveis heranças comparativas).
Serguilha desperta em seus leitores o questionamento das heranças visuais, além de promover constantes abalos sísmicos por meio de sua enxurrada sígnica, retorcida como um arabesco floral por conceitos filosóficos cujas ressonâncias são tenazmente retrabalhadas por ele. Não há motivos para cairmos em frustração se um número expressivo de palavras escapa à compreensão da nossa condição leitora, ou se a velocidade incomum da exposição a jogos visuais metafóricos extenuamente trabalhados pelo corpo do excriptor invade a tentativa de organização e frustra o elenco vocabular do leitor, habituado a comparações com a cena poética contemporânea e ao desgaste das poéticas cotidianas do sujeito egóico.
Em minhas pesquisas, proponho, à luz da herança conceitual de Kristeva, o que chamo de Barroco Floral, alcançando sua referência basilar na vida-obra de Teresa d’Ávila, com o volume Thérèse mon amour. Trata-se de um barroco envolvido em genealogias, formado a partir das fulgurantes existências do gênio feminino, segundo as pesquisas de Kristeva, por meio das narrativas das vidas-obras de Hannah Arendt, Melanie Klein e Sidonie Colette, que se expandem para as contribuições de uma figura mitológica, a medusa, e para as florações, já referidas por Colette, nas pinturas de Georgia O’Keeffe [4]. A própria vida-obra conceitual de Kristeva também participa do Barroco Floral, inscrevendo-se nos temas que compõem esse estilo, a saber, a condição estrangeira; a relação entre linguagem poética e o nascimento das imagens no cruzamento com possíveis discursos sobre a maternidade; a animalidade escrita; o cruzamento dos afetos nas florações; as composições escritas que desabrocham na contracorrente da herança filosófica do imperativo visual.
No ensaio intitulado “O encontro do Barroco Floral com a Estética do Laharsismo: fragmentos das errâncias das florações de Georgia O’Keeffe”, escrevo sobre cada um desses temas, entrelaçando-os em arabesco floral, de modo a dar vazão ao deslocamento do primado visual, que sempre acompanhará o gênero poético, para a inclusão discreta e visceral do sentido do gosto e seus efeitos estéticos no Laharsismo. Não à toa, Serguilha atravessa longas páginas iniciais de sua Estética do Laharsismo a nos contar sobre a sua excripta. Ao ficcionalizar o seu eu para além do já revoltado excriptor barthesiano, ao radicalizar possíveis fragmentos que deixam desveladas pontes para seus biografemas ocultos, por vezes soterrados pelas misturações sígnicas da arte e do pensamento, estamos nessa avalanche diante do excriptor, que dedica a vida a escutar e a escavar os ecos de vozes quase sempre silenciados, a percorrer traços em geral semiapagados pelo desgaste de repetidas reconstruções sobre ruínas e tentativas de esquecimento da experiência da dor e da solidão dos mais variados entes.
Na poética serguilhiana, o nascimento da palavra se reverte em paridura. Em cada um dos longos poemas do primeiro volume da Obra Poética, a força narradora lahar nos apresenta uma imagem na tentativa de (in)definição do poema – um rasgar que passa pela técnica de corte cirúrgico em momento de parto difícil, fazendo entoar repetida e diferentemente esse nascimento do poema entre carne e pensamento: “um poema advém de uma episiotomia”. O excriptor, como uma parteira ao mesmo tempo vigilante e paciente, oferece suas mãos e estiletes para dar à luz ao novo, que não se reduz à materialidade da palavra escrita, mas a atravessa em gestos rítmicos, deixando vir à tona sensações discretas de camadas intersticiais que tocam o corpo daquele que escreve, o excriptor transformado em força lahar, disposto a flagrar o impensado e o maculado. Nessa perspectiva, os personagens dão espaço para as forças lahars – fluxos de energia em geral heterogêneos às formas humanas. O que nasce nessa poética participa da carnalidade do mundo, segundo o pensamento de Merleau-Ponty recuperado por Kristeva para compor a necessidade da experiência sensível em um contexto que atualmente percebo demasiadamente dromocrático, segundo o pensamento de Virilio. Sem cair no retorno às devoções religiosas, Kristeva busca, através da experiência sensível, o que chama de experiência-revolta, a dar vida à experiência da revolta íntima, ou seja, a retomada e a ênfase da nossa vida interior e das sensações que atravessam a palavra, de modo a produzir o que na poética serguilhiana encontraremos sob a designação de “regerminações”. Ao encontrá-la na experiência mística de Santa Teresa, percebemos que a inspeção da teórica se amplia para outras vidas-obras de nossa sociedade secularizada.
O Barroco Floral nasce do fascínio daquele que escreve diante da imagem, especialmente da imagem pintada. Serguilha não foge da admiração profunda por diferentes pinturas e da tentativa de escrevê-las no choque com o seu universo incomum, atravessado pelos mais variados signos e pela carne dilacerada do poema, que para ele habita uma tela em permanente composição – como um quadro inacabado sempre em processo de contínua experimentação. No recorte de minha pesquisa, observo o retorno de dois pintores na poética Lahar: Francis Bacon e Jackson Pollock, referências do repertório de gosto do excriptor, que se somam à incorporação, a partir das nossas conversas sobre pintura, de uma pintora que compõe o Barroco Floral, a saber, Georgia O’Keeffe, que participa de fragmentos desse primeiro volume e de uma versão ligeiramente alterada de sua Estética do Laharsismo. Trata-se de reler as cabeças desmanchadas de Bacon, a dança acósmica de Pollock, na fricção com as imensas flores de O’Keeffe. As composições poéticas serguilhianas inscrevem-se em ritmo a causar instantâneos catastróficos nos leitores, como um gesto que faz perder a cabeça quando se tem a cabeça escarificada por sucessivas camadas de tinta entre o rosa pálido e o cinza-azulado de Bacon ou quando se dança como um dervixe rodopiante, ao estilo da Action Painting de Pollock. Nessas tentativas que fazem perder a semelhança humana, não apenas aquelas das mutações do rosto, ou mesmo da cabeça, o poeta ambiciona constantemente alcançar deformações radicais, as quais se misturam a imagens desfiguradas que evocam variações no campo semântico das deformações, fazendo nascer o informe, as amorfias, as anamorfoses, as dismorfoses. Serguilha, em sua poética de assombros episiotômicos, encontra-se com os filósofos do pensamento da diferença e suas noções sobre os infrassignificados, fazendo nascer, ao seu estilo dismórfico, a instabilidade rítmica e dançante do entrelaçamento dos acasos, das nuances em fuga que se encontram em gestos esfíngicos pela sugestão do interstício mangue íleo – equivalente do sémiotique, da différance ou do rizoma. Em sua Estética do Laharsismo, o excriptor não esconde o reconhecimento de que falha perante essa ambição, a ser chamada também, em outro fragmento, de “desmesura floral”:
tentei escrever sem versos, sem prosa, sem cânticos, sem ficções, sem desenhos mas tudo foi abrangido por crimes assintácticos e por ondas rítmicas delirantes a criarem lapsos adjacentes com a dor testemunhal de uma secreção desumana feita de palavras a voltarem-se para as traqueias respiratórias: [...] (Serguilha, Estética do laharsismo, In: acervo do escritor, consultado em 2023, p. 11).
Ao aprofundar o exercício das deformações, Serguilha busca a experiência da excripta poética do aformal, mas esbarra num resto de imagem pintada. Os leitores passam por uma experiência semelhante. Ao sobreviver à avalanche, os leitores se tornam praticantes de uma respiração cetácea (sugerida pelo excriptor) e o que lhes resta dos imensos poemas são fragmentos das desmesuradas composições – uma palavra a impactar uma vida excripta, uma sensação à procura de uma boca para ser nomeada, uma referência imagética para embalar o corpo depois da catástrofe. Quando o poeta chega ao horror da excripta pintada, segundo inspiração dos retratos produzidos por Francis Bacon, nos dá a ler o recalcitrante “grito insonoro”, que se espalha ao longo de sua produção – pelo menos na minha experiência leitora, essa imagem retorna tão viva e forte quanto a prática da episiotomia.
Na busca pelo assombro, pelas vias inexploradas, pelas sombras do pensamento, o Barroco Floral fortalece-se do interesse de escritoras, escritores e poetas que não mais reproduzem as marcas logocêntricas do olho, mas que tentam escrever desde um corpo marcado por um experiência-revolta onde as dobras invisíveis desse corpo vivem de uma anatomia em demudança. Nos passos da sugestão de Kristeva, em La révolte intime, a experiência interior é evocada em conexão com o retorno ao barroco, referido por Barthes ao mencionar as contribuições de Loyola em seus Exercícios espirituais. Ao pensar sobre o barroco, Barthes observa que esse estilo é “a arte da coisa vista” (2005, p. 68), mas o pensamento de Kristeva é impactado pela possibilidade de pensá-lo à luz dos infrassignificados, o que dá vida à modalidade linguística do sémiotique, a incluir a visão e os demais sentidos. Por esses caminhos sinuosos do barroco, a experiência dos místicos mostra-se fecunda a investigações. Assim, Kristeva amplia a sua noção de experiência-revolta, a ser lida como busca da experiência interior, por meio de referências poéticas e espirituais, o que a faz dedicar-se à vida e obra de Santa Teresa d’ Ávila, deslocando-a dos imperativos visuais para percepções da “boca” e da “pele”. Em Thérèse mon amour, a voracidade de Teresa antecipa uma forma de viver a escrita que reencontraremos na Estética do Laharsismo: “Ela revela também que o corpo do orador é um corpo-orifício e um corpo-pele que opera na proximidade e entra continuamente em vibração com tudo o que o afeta” (Kristeva, 2008, p. 129).
Serguilha, que trabalha poeticamente os infrassignificados, nos lança à experiência intersticial do mangue-íleo – esse entre-eternidade que cria cisão com a categoria tempo inserida na experiência cotidiana. O Laharsismo, assim como o vibrátil corpo teresiano, problematiza os diferentes corpos dos possíveis encontros extremados. Ao pôr em cena o próprio corpo em constante superação contra os efeitos disfóricos da sua dor crônica, o excriptor, sem entrar na expectativa leitora pela significação, infiltra-se nas dobras do corpo da língua, sendo percorrido por línguas em desestabilização, que se desvelam por suturas de uma mão histérica, guiada pelos sismos, pelo inconsciente inatual de Bergson, pela turbulência apaixonante do expressivo, pelo abismo de uma duração infinita, a trilhar dobras inflamadas, se demorando em labirintos no interior de uma barbárie onde rosas são plantadas à espera e à espreita de leitores que escavam caoticamente os fundos sombrios leibnizianos de seus próprios corpos. Estamos diante de atritos com as ruínas cristalinas e desumanizadoras serguilhianas, que extraem novas dimensões de tempo de suas mônadas leitoras.
Nas composições de Serguilha, persiste uma boca, que poderia criar argumentos em torno dos imperativos da voz e seus efeitos autoritários. O excriptor, no entanto, opta por deixá-la emudecida no horror. Numa poética avalanche desse porte, somos levados mais de uma vez ao estado de horror, o que desperta uma reviravolta no léxico da devoração que acompanha esse rosto, ou de forma mais ampla, essa cabeça esculpida pelo poeta. Para além dos dentes, dos sorrisos, das aberturas bucais, da possível plenitude da fala, seremos atravessados por murmúrios, sussurros, suspiros, sopros, fôlegos, gagueiras, hesitações variadas, vestígios de mergulhos no imemorial, num rosto cuja deformação se expande até se metamorfosear em outros modos de vida através de movimentos anorgânicos. Ao incluir nessas outras existências e suas sensações uma borboleta merencória por exemplo, ou ainda formas intersticiais mais delicadas e invisíveis, na contracorrente de nossa tendência humana de perseguir semelhanças a partir do rosto para despertar efeitos empáticos, somos estimulados a nos conectar com o minúsculo da vida – com a estranheza de opérculos, epifragmas ou mesmo de larvas e parasitas. Ao sugerir o que reconhece sob o nome de desumanização, cujas heranças estão em Nietzsche, Proust e Artaud, lidas como uma prática da dessubjetivação estendida a outros entes, como produção do delírio e da histeria para escapar de atributos psicológicos, como experiência do despertar da exultação nas forças-leitoras, Serguilha amplia, através de suas estranhas forças narradoras lahars, a experiência do pensar-sentir até a ambição do insensível, onde aconteceria o encontro com a eternidade que desponta do tempo puro proustiano e do instante pleno de Diderot. Assim, o excriptor conduz a “desumanização” sobre a nossa experiência leitora, o que nos leva não mais a cair nos imperativos visuais, mas ao indigesto contato com o desconhecido dos mais variados signos das artes, das ciências e das afluências do nosso pensamento.
No mundo das estranhezas serguilhianas, advém a pseudobanalidade de uma rosa. Uma rosa de Georgia O’Keeffe eclode no meio da devastação da poética avalanche para nos dizer que resta não mais uma forma de flor a ser abarcada pelo sentido da visão, mas a vibração fragmentada de uma cor mesmo quando se perde, para além do rosto, a própria cabeça. E a pintora, por meio de sua desmesura floral, faz perder a forma de uma flor, faz parir, por episiotomia, o acontecimento. O que resta a ser transcriado de forma poética? Possivelmente o gestus criativo brechtiano de que após a destruição há espaço para a regerminação, seguindo a retomada de um dos fragmentos mais impactantes da Obra Poética. Regerminar depois de Hiroshima e de Nagasaki, depois do Holocausto, depois da Nakba, depois da Guerra do Paraguai, depois do genocídio em Ruanda, regerminar enquanto duram os conflitos milicianos no Brasil, entre outras guerras não referidas nessa lista, requer, nessa discussão sobre imagens, um retorno a um debate a partir de fotografias que foram tiradas em agosto de 1944 pelo Sonderkommando. Na leitura de Didi-Huberman, em Imagens apesar de tudo, as quatro fotografias que restaram das atrocidades de Auschwitz fazem um necessário contraponto à defesa do inimaginável e do indizível nessa situação de horror. Falar sobre essas imagens atua na recusa de levar o horror para uma “adoração mística”, conforme Didi-Huberman recupera do argumento de Giorgio Agamben em O que resta de Auschwitz (Agamben, 2020, p. 44). Nessa circunstância incontornável de nossa condição humana, o gênero testemunho é acompanhado do que consegue resgatar entre escombros de fragmentos de imagens e da linguagem; segundo Didi-Huberman: “(...) em cada produção testemunhal, em cada ato de memória, ambas – linguagem e imagem – são absolutamente solidárias, não cessando de compensar as suas respectivas lacunas” (Didi-Huberman, 2020, p. 45).
Há por aqui uma tentativa sutil de tocar na indefinição da proposta poética de Serguilha, que, apesar de inserido na esfera de ficcionalidade do gênero poético, se mostra amiúde conectado a uma narrativa despedaçada, de caráter testemunhal, gênero também tocado por camadas de ficção, em suas múltiplas evocações em torno das deformidades até o paroxismo do que chama de “aformal”. Mas o que poeta testemunha? O nascimento da palavra e a relação da palavra com a imagem, especialmente a imagem pintada, constituem algumas respostas a essa pergunta que abarca um mundo de possibilidades. Se a experiência leitora é perfurada pela cronologia, a Estética do Laharsismo, por sua vez, aponta para o tempo crônico. O testemunho serguilhiano carrega, portanto, uma particularidade solitária, pois, ao mesmo tempo que vasculha uma excripta voltada ao tempo imemorial, vive de camadas da trivialidade vertidas em passos de danças fascinados pelo movimento, vive do impensável e de acontecimentos incontornáveis. A guerra, por exemplo, esse acontecimento traumático, acorda o senso comum para essa excripta, a causar sismos que desafiam os traumas, instaurando outras temporalidades em leitores sacudidos e escarificados pela crueldade delicada do Laharsismo. O desafio para a crítica inserida no tempo cronológico parece imenso. Por um lado, o que resta de imagem nas composições serguilhianas pode estar no excesso de imagens destroçadas, a despertar sensações de fractalidade voluptuosa em leitores tenazes, levados pelas ondas rítmicas ou pelo sentimento de decifração de enigmas cujas perguntas seguem um fluxo geralmente inserido no tempo dos relógios, correndo o risco de naufragar nas perguntas da cultura do reconhecimento e das consagrações. Ao escaparmos da tendência ao movimento dual em nossas leituras, há incontáveis heterogeneidades para o nosso contexto histórico, nas quais as forças narradoras lahars nos fazem dançar pelas raias dos signos, a romper com a expectativa formal do poema, adotando extensão de fôlego que ultrapassa o necessário até mesmo para a experiência de epifanias ou do que resta do religioso, considerando nessa poética a gestualidade encantatória de seus narradores lahars, com suas orações replicadas a induzir o efeito por vezes monótono, sedutor e hipnótico dos cânticos sobre os corpos – ainda formas familiares do nosso sentir inserido na tradição do que resta das devoções. Serguilha, contudo, ao buscar o retorno ao tempo fora do cronológico, parece estender a experiência sensível de suas forças lahars para sensações ainda não registradas.
Semelhante ao efeito despertado pelas imensas flores de O’Keeffe, que a partir da cor fazia nascer um mundo sensível a ser recriado pelo mundo interior de cada espectador, Serguilha estende a excripta das imagens pintadas para além do limite do repertório tradicional de sensações do leitor. Sem aderir ao gigantesco passo de Clarice Lispector em Água viva (de 1973), cuja força protagonal é curiosamente uma pintora que faz nascer sensações não catalogadas numa audaciosa mistura de cores em sua paleta afetiva, desde uma alegria mansa, ou diabólica, ao branco triste, Serguilha, por sua vez, na sua traçadura plástica de cores excriptas, nos dá quadros suspensos de afetos ainda não nomeados, através da estratégia narrativa da deformação levada a limites insuportáveis. A Estética do Laharsismo trabalha no despertar de experiências sensíveis, por meio de restos do visível, de escutas espasmódicas, de tatilidades esburacadas, esculpindo metamorfoses digestivas, pulmonares, intestinas e biliares, em complexas aproximações das semelhanças entre vítimas e carrascos. A poética Lahar faz emergir em seus leitores recriações afetivas dos gritos silenciados que outrora foram emitidos pelos seus personagens, depois foram esquecidos e transmutados em forças lahars.
Serguilha é acompanhado, na Obra Poética I, das exuberantes flores em deformação da fotógrafa e artista visual Márcia Charnizon, que nos expõe ao punctum da avalanche floral. Nesse encontro, a técnica da câmera de Charnizon dança ao estilo das mãos fotografadas de O’Keeffe por Alfred Stieglitz. A força de expansão referida por Barthes, a nos dar um caminho alargado para o punctum, invade a carne movediça de Charnizon, que faz da imagem trêmula da pétala o efeito borrado de ferimento que sentimos ao ler o texto-avalanche de Serguilha. Somos expandidos, por texto e imagem, em sensações não nomeadas. O excriptor, tocado pela pintura e pela fotografia dessas flores, é acompanhado das perturbadoras cintilâncias laranja-avermelhadas das papoulas orientais O’Keeffeanas, que refletem o adensamento da forma-sensação das imagens não mais diretamente associadas a intenções religiosas, a incluir Bacon, que, segundo a leitura de Deleuze de “Pintura, de 1978”, flagra o deslocamento do que descreve como “oval laranja-ouro” projetado na porta dessa tela do pintor (Deleuze, 2007, p. 152), de modo a reenviar a um uso profano da auréola, outrora pintada sobre as cabeças das figuras religiosas. Serguilha, que escreve pintando ao lado das cores e deformações de Bacon, de O’Keeffe e de Pollock, nos lança no meio de enredo cujo início vive de diferimentos, no meio de forças lahars impiedosas. Com as cabeças partidas, em estado de vertigem, resta aos leitores o gesto de regerminação, a começar pela experiência sensível. Resta-nos uma espécie de dança sem cabeça que acontece por intermédio do estranho estado das flutuações. O que desabrocha dessa experiência está na paridura de afetos durante e após a catástrofe do texto. Somos instigados a criar nomes a partir das ondas rítmicas que flutuam em torno dessas composições estranhas. Na minha experiência leitora, eclodem, especialmente da excripta sob o efeito das cores de O’Keeffe, sensações que chamo de a solidão-mangue; a ternura pós-catástrofe; o inebriamento da Ileíte; a alegria-êxtase da destruição regerminativa; as granulações Beach Birds delirantes; o alaranjado da RÉ-existência diastólica nos interstícios da tapeçaria geodésica.
Essas nomeações constituem reações da leitora bailarina às sucessivas deformações ritmizadas e produzidas pelo excriptor. Em algum momento da travessia leitora, nos perguntamos o quanto de deformação do corpo do poema é possível suportar sem com isso interferir na experiência do testemunho – tanto para as forças narradoras lahars quanto para os seus leitores. Se nossas faces ficam estraçalhadas, por onde vamos viver o testemunho desse horror? Se nossos rostos chegam a esse nível de deformação, como manteremos os príncipios ético-estéticos da necessidade de caráter para o relato do testemunho? Nas páginas iniciais de sua Obra Poética, o excriptor refere o seguinte: “um animal-poema dentro de uma golpeadura assintáctica secreta ininterruptamente suor, sebo, estrume e tempo: um animal-poema croniza a ferida mas jamais deixa cadaverizar um corpo morto” (Serguilha, 2022, p. 12), que parece uma reafirmação ao desafio de uma voz que reivindica a presença testemunhal em falar é morder uma epidemia: “O QUE PODE UM POEMA PERANTE um corpo-do-outro estraçalhado e sem testemunhas?” (Serguilha, 2022, p. 409). Eis uma parte da resposta a partir do próprio corpo do poema:
Um POEMA torna-se um desbridamento simultaneamente inconsciente, autotrófico, gérmico e químico dentro de uma ferida crónica [...] O POEMA contém uma hemorragia febril, uma conexão anómala com firmeza deformante e enlaça o corrimento sanguíneo entre dois ganchos da vernação insana envolvidos simultaneamente pelas movências refractivas e pelo término e remate de um estoma [...] um poema religa alças biliares e vasos com o atrito das punções do impensável pleno de espículas ígneas em des-aparição: o poema é uma exuberância rigorosa da ANASTOMOSE dentro da DESUMANIZAÇÃO (Serguilha, 2022, p. 12).
Outra parte da resposta percorre o segundo volume da Obra Poética, cujo subtítulo contém a temática da dança, indicando que a saída para esse impasse está no corpo bailarino, o que nos oferece uma chave para (re)voltarmos ao primeiro volume na condição de bailarinos sem cabeça. Sim, estamos com a cabeça perdida pelas sucessivas deformações e nos cabe dançar com o resto do corpo. Uma dança que já está acontecendo no conjunto das composições do poeta. Uma dança que invade o atormentado e adoecido corpo da força lahar Actriz, em A Actriz, A Actriz, a fazer lembrar as flutuações que recebem o nome de uma “suavidade inexplicável” para Anne Dufourmantelle. Ana Maria Haddad Baptista, que escreveu um precioso livro sobre a poética serguilhiana e a acompanha desde a chegada do excriptor em terra estrangeira, leva as flutuações para o título de sua pesquisa – “flutuações furiosas”. Também podemos considerar que, depois de uma luta, como acontece no corpo convalescente da Actriz, e na captura da carne ulcerada do poema, especialmente nesse volume inaugural de seus temas de base ensaística-poética, a fúria se manifesta vivamente, mas também é possível abrir espaço para o desconhecido das sensações, como registrou o poeta e crítico literário E.M. de Melo e Castro, no início da descoberta e acolhida dessa poética que, nas suas palavras, “remonta às origens da humanidade”: “Esse estado fluido de fruição interminável” (Melo e Castro, 2015, p. 133). Anne Dufourmantelle reconhece, no que chama de potência da suavidade, algo na orientação de um tempo imemorial, onde não havia dissociação entre a existência humana e os “elementos”, os “animais”, a “luz” e mesmo os “espíritos” (Dufourmantelle, 2022, p. 16). A poética de Serguilha, que se volta ao tempo puro, resgata as sugestões do “estado fluido” e da suavidade sob a forma de flutuações. A experiência da avalanche produz um trauma, semelhante ao da guerra, ou do sofrimento físico/psíquico desencadeado pelas doenças. A suavidade chamada de “pura” advém nos “territórios do trauma” (Dufourmantelle, 2022, p. 52), além de guardar o “segredo da animalidade” (Duffourmantelle, 2022, 17). É nessa costura lacunar que inscrevo o que sempre retorna da minha vida leitora laharsista, sobretudo desse primeiro volume da Obra Poética. O que não me canso de voltar em devaneios da pós catástrofe de leitura habita o entrechoque delicado do segredo coreográfico de Cunningham, que traz à cena a secreta flutuação do animal nos bailarinos, em Beach Birds, e seus movimentos de pássaros. No cruzamento com os gotejamentos de Pollock, que já assimilaram, para além de Bacon, a perda da cabeça, desabrocha qualquer coisa tão suave e invisível quanto uma flutuação que parte de uma cena na qual as pernas de Pollock realizam o movimento semelhante ao dos bailarinos-pássaros de Cunningham. Não há rostos, tampouco cabeças nas telas de Pollock, mas esse enigmático efeito de pliê, em gesto de pintura de Pollock, registrado por Hans Namuth, reenviando à animalidade daqueles bailarinos, que realizam o mesmo movimento do pintor. Sobre o espaço do corpo, o filósofo José Gil sustenta que este se mostra “presente por toda parte” (Gil, 2020, p. 45), incluindo o que chamará de “território dos etólogos” (Gil, 2020, p. 46). Não à toa, José Gil dedica-se a pesquisas sobre os patchworks de Cunningham, esses “pedaços de movimentos provenientes de origens diversas” (Gil, 2020, p. 65). Nessa apresentação do primeiro volume da Obra Poética, cabe reproduzir a pergunta de José Gil acerca da relação corpo-dança: “O que se passa no corpo quando este se põe a dançar?” (Gil, 2020, p. 64). Adaptando para a experiência leitora bailarina, deixo a seguinte provocação aos leitores por vir: O que se passa no corpo do leitor da poética do Laharsismo? A pensar junto com o filósofo a paradoxalidade do corpo humano, que “pode devir animal, devir mineral, vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento” (Gil, 2020, p. 53), o corpo leitor em estado de laharsismo, sem se fixar no percurso de uma distância objetiva e de um tempo moldado pela cronologia, deverá estar aberto à experimentação das mais variadas texturas, a construir séries, coreografias insólitas, num espaço próprio, sob o risco da tremenda solidão criativa.
Eis algo que gostaria de ter escrito para dar o tom do impacto de leitura dessa poética:
Como se, de repente, alguém pegasse a sua mão ao longo de um precipício pelo qual fosse preciso não apenas passar, mas dançar, e que, sim, dançaríamos sem medo e nem vertigem, e onde o próprio espaço se refugiasse em nós e onde, uma vez chegados do outro lado, tudo teria mudado, mas sem violência. A revolução íntima é dessa ordem? (Dufourmantelle, 2022, p. 95).
Apesar de longos conflitos violentos pelas páginas escarificadas da poética Lahar, guerrilhas manchadas e episiotomias insuportáveis, encontramos, no estilete fistulado de Serguilha, estados abertos em rasgaduras para a nossa bailarina regerminação interior.
Referências
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Notas
[1] No ensaio “Dobras lahars na poética serguilhiana”, desenvolvo o tema do leitor bailarino-coreógrafo, na Revista Sphera, 2021. Disponível em www.revistasphera.com/post/sobre-salto-roubados-de-luís-serguilha
[2] A paginação referida no ensaio não obedece à edição impressa da Obra Poética I, pois a consulta à obra foi realizada anteriormente ao processo de diagramação.
[3] Publicado na Revista Sphera, Disponível em www.revistasphera.com/post/limiares-do-animal-poema-em-hamartía
[4] Ensaio “Barroco Floral”, a ser publicado na Revista Palavra Comum, em 2024.
Luciana Abreu Jardim é professora de literatura na Universidade Federal do Pampa. Doutora em Teoria da literatura pela PUCRS, Pós-doutora pela UFRGS, licenciada em Filosofia e bacharel em Comunicação Social-Jornalismo, pela PUCRS. Desde 2011 atua como professora colaboradora do Mestrado e Doutorado em História da Literatura, da FURG, dedicando-se a orientar pesquisadores e ministrar disciplinas relacionadas à teoria da literatura
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