A Editora Caravana, baseada em Belo Horizonte, está lançando o romance Suspiro seco, de Edgard Pereira, mais um notável título do ficcionista, ensaísta, pesquisador e professor mineiro dos mais representativos, responsável pela formação de várias gerações de profissionais das letras na UFMG, um dos grandes nomes que integram o Conselho Editorial de Sphera. Confira aqui um fragmento do livro, já disponível em https://caravanagrupoeditorial.com.br/ e plataformas que comercializam livros, como Amazon.
Suspiro seco
(fragmento)
Edgard Pereira
Nos primeiros anos do curso de Letras, Diogo visitava a redação do Suplemento literário das Vertentes, caderno cultural do Jornal das vertentes. Ali, esquina de Avenida Olegário Maciel com Bueno de Rivera, se processaria parte de sua desordenada aprendizagem literária. Após vencer uma portaria e um corredor, ingressava-se numa ampla sala, na qual se espalhavam oito mesas de metal cinzento, onde se postavam escritores, articulistas, ilustradores e revisores. Alguns funcionários tinham a sua idade, formavam uma agremiação inusitada e erudita, jovens partilhavam a criatividade com autores experientes, alguns renomados. Poetas, críticos e ficcionistas de variadas tendências, intelectuais interessados em exercícios de ruptura no tecido linguístico trabalhavam lado a lado na feitura de uma folha de motivação inteiramente artística. Aqueles eram os melhores cultores das letras na região, reconhecidos pela elegância da linguagem, a pertinência de efeitos, a espessura de significados. De alguns, conhecia poemas e novelas originalíssimos, de ousadas soluções técnicas e ideológicas, forjadas na estrutura de uma sintaxe livre e do pensamento aceso. A despeito dos sobrenomes insignes dos colaboradores, a folha publicava também banalidades fatigantes. E havia os novos da província. Folgava sobretudo revê-los entrando na sala de redação, sobraçando pastas e resmas de papéis, os ingênuos poetas do interior, cujas passadas em desconjuntadas botinas contrastavam com a atmosfera indelével e melíflua de seus versos. Ele mesmo vinha das grotas do Rio Verde. Deixavam distante os grotões de origem, entranhados à beira de rios caudalosos, o Rio das Velhas, das Mortes, o São Francisco, o Doce e o Jequitinhonha, o Sapucaí, o Verde. Os contatos restringiam-se a breves visitas, em geral na parte da tarde, com o objetivo de levar artigo ou receber o pró-labore.
Escritor consagrado, Múcio Julião, o fundador da página literária, praticava uma literatura nova, de imersão no fantástico, vertente em que era considerado pioneiro no país. Membro de agremiações culturais, era festejado, sobretudo, pelo apreço à ficção, capaz de anular os limites entre o real e a fantasia, com personagens híbridos, misto de seres humanos e animais, porquinhos da índia dotados de pendores artísticos, dóceis pombas que produziam néctar terapêutico, imensos cavalos alados, de pelos luzidios e coloridos. Meia dúzia de jovens escritores foram escolhidos criteriosamente para o quadro de funcionários. Entre eles, conhecia Daniel Gama, Charles Rego Pitta, Leandro Ruivo, Heitor W. e Jansen Pena Guimarães. A convivência englobava ainda nomes aclamados das artes plásticas; esses, como ele, Diogo, ali compareciam como freelancer.
Percebeu que ali se processava de forma assistemática uma aprendizagem. Alguns autores pareciam-lhe radicais, intransigentes, à exceção de Délio Garrido, com quem se identificava, temperamento recatado, mas dotado de agudo senso de humor, um sorriso enigmático esboçado no canto dos lábios. Hábil criador de atmosferas, surpreenderia a crítica pela ousadia temática, linguagem direta e tom irônico, descontraído e irreverente de suas histórias, breves mas incisivas. Tímido, ingênuo e inexperiente, a despeito de alguma bagagem cultural, Diogo permanecia ali o tempo necessário para encaminhar as colaborações. As conversas com os novos autores (assim a imprensa os designava) eram objetivas, rápidas, quase monossilábicas. O fato de terem sido capitaneados por Múcio Julião, na origem do periódico, já lhes ornava a fronte de louros. “Trouxe matéria nova”. O mais próximo adiantava: “deixa aí”.
Heitor W., na véspera de um período de férias, após ouvir de Diogo que teria mais tempo dedicado à leitura, dirigiu-se a ele, nestes termos: “Vou dar uma pausa nas leituras. Nessas férias vou pegar muitas mulheres”. O ex-seminarista que era surpreendeu-se, percebendo a duplicidade e o alcance maroto da intervenção extemporânea. Atlético e maciço, Heitor movia-se com a elegância de um tigre asiático. Bastante agitado, parecia um indivíduo nervoso, tenso, aplicado em acalmar um dragão toda noite. Nascido em família abastada, aparentava não se preocupar com questões miúdas de sobrevivência. Estagiava na editoria de cultura de um jornal de média circulação, o Tribuna de Minas. À boca miúda, falas maldosas asseveravam que fora caso de um poeta surrealista. A boataria, uma instituição nacional, os alvos estavam sempre ligados a comportamento ambíguo. De outra feita, o interlocutor fora Jansen Pena, um rapaz corpulento, alto, de perfil inquieto, que se afirmava como ficcionista. Comentou de forma leviana, mostrando uma fotografia do autor de Macunaíma, numa arte final, que considerava Mário de Andrade um sujeito feio. Diogo nem lembrava a propósito de que o comentário se fizera. Pensou: desde quando a beleza masculina era um predicado de grandes escritores? Nada disse, mas desconfiou que o descrédito à aparência física de Mário de Andrade comprovava de sobra o mérito de sua literatura. Pode ter sido também uma provocação de Jansen Pena, espalhafatoso e ágil, como sua escrita. Na sequência de intensa aprendizagem, em breve lançaria seu primeiro livro de contos, a que se seguiram outros títulos, numa gradação ascendente em densidade, sem abandonar a agilidade e o vigor juvenil, voltados para a revisitação crítica do passado, a sátira às convenções e o interesse pela condição humana. (...)
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