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Foto do escritorRevista Sphera

Doze poemas de Virgílio Mattos




Perdas


Três dicionários que nunca usava muito mesmo

ainda que fossem bons dicionários

e tivessem custado caro


Outra me levou um rádio AM/FM que tocava também fitas-cassete.

Era um bom rádio.

Sempre com boas notícias

e nada de corações partidos em peitos solitários



Guerra civil española


Fome e frio

uns pedaços de trapos,

cheios de buracos,

pra cobrir o corpo e quebrar a ventania


Fome e calor

uns buracos cheios de homens

todos uns trapos

derretendo na angústia e na monotonia


O que mais judia mesmo é a fome

a mais antiga derrota.


II

Vejo uma súcia de vizinhos queixosos

entre si e enredados em si mesmos

mal querências, mal de amores vários,

até um certo ódio de ti.


Vejo os fascistas iguais através dos tempos

exceto nas roupas e nos dentes

seja na Catalunha, em janeiro de 1939,

seja em Brasília, desde 31 de agosto de 2016




Por pouco


por pouco não pego

a van da vanguarda

em um ponto em 1978


cheguei um pouco atrasado

de desinteresse

de cansaço

de sola dos pés doendo


os passageiros não demonstraram

o mínimo empenho em ajudar no embarque

o motorista com pressa

gente cansada a beça

pingando de sono

de ponto em ponto

ano após ano




Artes e ofícios


curso por correspondência

para atirador de facas


adestrador de emoções

vira-latas


psicanalista do consciente

ausente por uns instantes


talvez um poema galante




Uma hora melhora


continuava a pensar nela até hoje

aquela mulher era como uma doença

cheia de recidivas e sem nenhuma esperança de cura




Grandes erros do passado


NÃO CONSIGO DECIFRAR

MAS ERRAMOS FEIO

EM ALGUM LUGAR


AINDA NÃO SEI

- SE É QUE ALGUM DIA SABEREI –

ONDE

MAS SEI QUE O ERRO É GRANDE




Tango


O casal apaixonado

dança em braille


todo assanhado.


Rodopio , pé prum lado,

pé pro outro

e acrobacia.


Queria mesmo era arrastar os pés devagar

girar, lento, lento, lento.


Dançar

parecendo que a vida pode acabar

a música não.




Proletariat poets


POETAS PRECISAM

DE RAÇÃO ESPECIAL

DE REVOLUÇÕES

E ÁGUA GELADA PELA MANHÃ

AMORES MUITO IMPETUOSOS

BEIJOS EM CLOSE-UP

E UM POUCO DE SONO

EM CAMAS LARGAS

E CONFORTÁVEIS

ONDE DIVERTEM SUAS MUSAS

E SE LAMBUZAM

JÁ TRAZEM TODOS OS SONHOS COM ELES

O QUE FACILITA MUITO PRA TODO MUNDO

FAZ PARTE DA BAGAGEM, SEMPRE LEVE,

DÚVIDAS IRRECONCILIÁVEIS

DÍVIDAS IMPAGÁVEIS

E

CAOS

SEMPRE QUE TENTAM ORGANIZAR

ALGUÉM OU ALGUMA COISA


POETAS PROLETÁRIOS SÃO SEMPRE MAIS INTERESSANTES

A MEMÓRIA DE ELEFANTE DAS PAIXÕES QUE ESQUECEM

NAS OUTRAS PAIXÕES

ENQUANTO SEGUE O BAILE

E UM NOVO MUNDO SE TECE




Lista de necessidades dos poetas


Poetas precisam

mais de sonhos

do que de empregos

mulheres com seios fartos

que pareçam obra de arte

- uma certa espetacularização faz parte –

praias com areias

muito brancas e finas

tentando matar

com hectolitros de água gelada

ressacas atávicas e cefaléicas pelas manhãs

intermináveis e fotofóbicas


têm o hábito de serem

expulsos da República

desde Platão, ou mesmo

antes de qualquer registro


Insisto: poetas precisam mais de sonhos

do que de empregos


Bom deixá-los dormir mais um pouco.




Da existência dos poemas


Poemas existem

que saem para conquistar o mundo

quando jovens


E voltam, anos depois,

bem mais magros,

com os dentes cariados

e pesadelos miseráveis


Costumam não ser mais os mesmos

que saíram um dia para conquistar o mundo

quando jovens


Outros costumam nem voltar

e deixam olhos úmidos

toda vez que a gente lembra deles

e corações partidos


na verdade,

cacos de corações partidos pelos caminhos.




Tudo ali tinha um cheiro e um gosto antigos


Casa ampla recheada de avós recendendo a alfazema.

No cabelo das crianças, e também de alguns adultos,

o cheiro já esquecido de gomalina, ou brilhantina, ou gumex

que tinham efeito parecido e cheiros diferentes, bem diferentes.


Nos caldeirões, que também eram usados para ferver vivos

siris e caranguejos, uma monstruosidade sem tamanho

que a maioria chupava até os ossos,

eram feitas também sopas inesquecíveis,

daquelas com tudo dentro,

até uma certa felicidade infantil, dificílima de encontrar

em qualquer outro prato.

Tinha gosto de pimentão.


O homem que, décadas depois, vim a saber ser meu avô,

tinha cheiro de óleo quina e água velva

e dois baitas caninos de ouro

que eram seu orgulho.


Nas ruas o cheiro de maresia confundia-se

com o cheiro sufocante do calor.

Lembro que era muito feliz.



Substancial é macarrão com feijão


Você quando escreve

outras coisas:

discursos, anúncios, conferências, aulas, textos

as palavras ficam tímidas e

algumas

sequer mostram suas coxas


Palavras vadias existem de monte:

repressão, arrogância, cinismo

por exemplo

que fazem sexo no primeiro encontro

- por que não? –


Palavras são matéria-prima

como o minério de ferro das entranhas de Minas

Há palavras poeira

como areia

e escorregantes

como argila


E incapturáveis

como vento de maio e

escuridão

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