Do Benim ao Brasil: Marcos Antônio Cardoso reflete sobre Vodum e Festas do Rosário
- Revista Sphera
- 24 de dez. de 2024
- 4 min de leitura

Mina, Vodum e Rosário
MARCOS ANTÔNIO CARDOSO
A Costa da Mina ficou conhecida pelo fato de ter sido construído na Costa do Ouro, atual Ghana, o Castelo de São Jorge da Mina entre 1482 e 1484 e até 1637, quando os holandeses o ocuparam, ter sido o enclave português mais importante para o comércio de ouro e o tráfico de escravizados. O Forte de São Jorge da Mina foi um centro para o qual escravizados de várias partes da costa ocidental africana eram levados - área que os ingleses designaram de Costa dos Escravos -, e de lá eram embarcados para o Brasil.
Desde o início, “mina” identificava um porto de embarque e que os escravizados ali comprados podiam ter procedências bem diversas, e a expressão “Costa da Mina” passou paulatinamente a abranger as populações africanas em seu entorno, como a Costa do Marfim, a Costa do Ouro, a Costa dos Escravos, hoje Golfo do Benin, o que agora equivale aos atuais territórios de Ghana, Togo, Benin e Nigéria. Como assinalou o antropólogo Luís Nicolau Parés,
"mina ou “preto mina” podia designar africanos não só da Costa do Ouro, bem como da Costa do Marfim e da Costa dos Escravos, esta última incluindo Togoland, Benin e Nigéria ocidental. Desse modo, a abrangência semântica do termo “mina“ passou a incluir quase todos os povos do Golfo do Benin, desde um ashante até um nagô." (Parés, 2007: 28).
Este é caso da utilização do termo “mina" em Vila Rica de Ouro Preto e Mariana no século XVIII em Minas Gerais. A mudança semântica explica por que o termo “mina” significa coisas distintas no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, na Bahia e no Maranhão. No Rio de Janeiro, referências a escravizados da Costa da Mina aparecem desde o século XVII e, como demonstram os compromissos de irmandades afrocatólicas de homens pretos no século XVIII, mina parece corresponder aos povos do atual Benin, chamados de jeje na Bahia.
Os principais grupos escravizados em Vila Rica de Ouro Preto e Mariana no século XVIII são procedentes da Costa da Mina. A identidade mina entre povos tão heterogêneos passou pela construção dinâmica de uma língua comum, permitindo a interação social e a sociabilidade pela linguagem. Conforme Moacir Rodrigo de Castro Maia,
"E essa língua franca, comum nas lavras, casas, ruas, estradas, igrejas e comércio foi registrada em São Bartolomeu, distrito de Vila Rica. Foi o português Antônio da Costa Peixoto que, desejando que os senhores, para maior segurança de suas casas, aprendessem o falar dos africanos da Costa dos Escravos, escreveu o vocabulário “Obra nova da língua geral de mina”, elaborado entre 1731 e 1741. Peixoto viveu nas Minas do Ouro, no turbilhão das primeiras décadas, e o seu vocabulário registra um falar que se situa por volta de 1724 (…) Além de fazer a tradução da língua geral para o português, ele apresenta vivos relatos de situações coloniais cotidianas. Frente às tensões entre senhores e escravos, (…) o manuscrito de Peixoto reforça o uso de uma língua geral de base africana, em contraste com a da sociedade mineira dos primeiros tempos.” (Maia, 2022: 96)
Isso significa dizer que todos esses povos habitavam a área do Golfo do Benin, o que confirma a abrangência semântica e domínio geográfico da denominação “mina” e que em certos lugares, como o Maranhão, mina chegou a designar simplesmente africano, sem nenhuma especificidade de procedência. Segundo Yeda Pessoa de Castro,
"As evidencias linguísticas encontradas até agora não deixam dúvidas quanto às raízes daomeanas da sua estrutura conventual e litúrgica, apoiadas em um sistema lexical de base fon, muito embora não devamos esquecer de que o fon, gun e mahi são línguas muito próximas e de que seus falantes costumavam incorporar ao seu panteão divindades pertencentes a povos vizinhos, principalmente daqueles por eles conquistados por expedições guerreiras, como foi o caso do povo fon que adotou o culto a Xapanã, vodum da varíola, de provável origem mahi." (Castro, 2002: 51)
Esta citação de Castro (2002) corrobora a evidência histórica da presença das sacerdotisas voduns na representação das rainhas do rosário nas irmandades pretas em Ouro Preto e Mariana no século XVIII, conforme o historiador Moacir Rodrigo de Castro Maia (2022/2023). Algumas dessas mulheres africanas de grupos étnicos oriundos do Benim, que, escravizadas no Brasil, tornaram-se “forras” e importantes lideranças religiosas das comunidades negras como sacerdotisas vodúncis, ao mesmo tempo que exerceram cargos como juízas e rainhas das irmandades afrocatólicas de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
Todas elas, identificadas como mestras ou praticantes de rituais africanos, entre eles o culto ao vodum Dangbé da Costa da Mina, foram perseguidas pela Igreja Católica e processadas pelo Tribunal da Inquisição de Lisboa. É o caso de Ângela Maria Gomes, coroada como Rainha do Rosário de Ouro Preto, denunciada em 1760 e cujo processo encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Portugal.
Referências
Castro, Y. P. (2002). A língua Mina-Jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro; Secretaria de Estado da Cultura.
Maia, M. R. C. (2022). De reino traficante a reino traficado: a diáspora dos couros do golfo do Benin para Minas Gerais (América Portuguesa,1715-1760). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional.
Maia, M. R. C; Rodrigues, A. (2023). Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário: Mulheres africanas e Inquisição em Minas Gerais (século XVIII). São Paulo, Chão Editora.
Marcos Antônio Cardoso, conhecido como Markim Cardoso, é uma das maiores referências do ativismo negro no Brasil, com atuação intensa ao longo de mais de 40 anos. Intelectual orgânico causa antirracista, educador social, filósofo, historiador e escritor, são notáveis suas contribuições ao enfrentamento estratégico do racismo em escalas local e global. Entre seus grandes feitos, está a coordenação do primeiro e legendário FAN (Festival de Arte Negra) de Belo Horizonte. Publicou, entre outros trabalhos, O movimento negro (Mazza Edições, 2019).
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