Laíse Ribas Bastos
Drummond por Yara Tupynambá
Conversa com a modernidade: Drummond com Alvim, o tempo e uma exasperação frágil
Inerente à poesia, existe uma obrigação de fazer de uma insatisfação uma coisa fixa. A poesia, num primeiro movimento, destrói os objetos que apreende, devolve-os, através de uma destruição, à inapreensível fluidez da existência do poeta, e é a esse preço que ela espera reencontrar a identidade entre o mundo e o homem.
Georges Bataille
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.
João Cabral de Melo Neto
Em uma entrevista concedida a uma emissora de televisão, em 1981, Carlos Drummond de Andrade é perguntado se ele poderia ser considerado um otimista. A resposta veio à maneira de sua poesia: “sou inteiramente otimista sem deixar de ser pessimista com relação à vida. Uma vida que passa no meio de bombas nucleares e outras bombas menores eu acho que não é realmente uma coisa muito alegre, mas a gente faz o possível para viver bem”. De fato, na entrevista, Drummond desmistifica a possibilidade de transcendência da poesia, lembrando o quanto ela também se faz a partir da matéria negativa presente no mundo. Sua escrita se sustentaria, portanto, onde a humanidade, ou ao menos uma parte dela, falha e fracassa.
Pessimismo e fracasso característicos da flor antipoética de Drummond – quase contemporânea, lembremos, da flor cabralina de “Antiode”. A “forma insegura e feia” sustenta-se em algum espaço aberto pela escrita, alguma liberdade possível quando o poema termina: “Façam completo silêncio, paralisem os negócios,/ garanto que uma flor nasceu.” (2012: 311). Consciência de escrita que incorpora, recorrentemente, a falha, a falta e a sutileza do fracasso como potências, como um modo de intervir intensamente no mundo: “apenas um arabesco/ em torno do elemento essencial – inatingível”, depara-se o leitor nos primeiros versos do poema “Fragilidade”, não por acaso, poema de A rosa do povo, livro em que a inconstância da poesia, sua força de destruição, libertação e arejamento, estão exaustivamente expostos.
Ainda na mencionada entrevista, Drummond salienta que as pessoas podem ser poetas e se esforçam para isso, e são, também, passíveis de erro: “não há medida para o poeta”, diz Drummond. E se poeta não se mede, a poesia, resultado de seu fazer e labor, também não há medida para aquilo que diz e como diz. Trinta anos depois, a frase de Drummond ressoaria no poema “A poesia”, de Francisco Alvim, publicado em 2011, em O metro nenhum: livro que já no título opera uma dupla defesa (de Drummond e do gesto gratuito própria escrita) – a de que não há poeta maior, esse título simbolicamente legitimador, muitas vezes procurado e desejado de alguma maneira: “[...] Quando por unanimidade ou quase/nesse jogo tolo/de se querer medir tudo/Drummond foi o escolhido/ele comentou/alguém já mediu com fita métrica/para saber se de fato sou/o maior poeta?” (2011: 53)
Desde o final da década de 1960, a escrita de Francisco Alvim orienta-se por uma permanente conversa com a poesia Drummond. Mais do que interferências, trata-se de um estudo do mundo a partir de Carlos Drummond de Andrade, percebido como uma “ausência assimilada”, como está no conhecido poema de Drummond, “Ausência”. E se ela é “um estar em si”, é sob esse aspecto que se manifesta o olhar partilhado por ambos. Esse modo drummondiano de ver o mundo pode ser verificado em todo o projeto poético de Alvim, naquilo que diz respeito ao tempo, e se configura especialmente como uma forma de interpor-se, intervir e tocar no tempo presente. Tanto em Alvim, como em Drummond, este olhar para a vida diária e um mundo prosaico em certa medida desvenda e desdobra um mundo possível. Assim chegamos a versos como “As casas espiam os homens/ que correm atrás de mulheres” logo no início do antológico “Poema de sete faces” (2012: 53); ou, num contexto menos citadino, “Devagar... as janelas olham”, em “Cidadezinha qualquer” (2012: 109). Versos e movimentos que Alvim parece suplementar em poemas como “Com ansiedade”: “Os dias passam ao lado/o sol passa ao lado/de quem desceu as escadas//Nas varandas tremula/o azul de um céu redondo, distante//Quem tem janelas/que fique a espiar o mundo” (2004:141).
O poema de Alvim projeta um olhar através de um ângulo interno, vindo de dentro, contraposto à imensidão do céu azul, distante e que está no lado de fora. Por conta desse distanciamento, é possível captar apenas um contorno do céu, que é o da imagem trêmula na varanda, como indicam os versos 4 e 5. O fato é que, entre a personificação de janelas e casas nos versos de Drummond, e a metáfora de espiar o mundo (no poema, objeto distante como se fora de alcance) em Alvim, imbricam-se espaço e tempo. Isso porque o registro da experiência humana (onde e como quer que ela ocorra) e do que ela provoca é também um ato de olhar para o seu próprio tempo em perspectiva, mesmo que seja para registrar a suposta desimportância de sua lenta passagem através das imagens do campo (“Eta vida besta meu Deus” – atesta o olhar lançado pelas janelas de Drummond mais uma vez em “Cidadezinha qualquer”). Em Alvim essa relação entre o espaço e o tempo configura-se também como uma estratégia de evasão do sujeito, se ainda lembrarmos que o ato de espiar, em uma das acepções de observar, pressupõe, sempre, um olhar às escondidas, de alguém que, embora presente, pode não querer aparecer. Essa relação também está no poema “Puta”, com um sujeito derrubado, “sento na grama/choro/espio o tempo”. Publicado originalmente em Lago, montanha, em 1981, o poema se estrutura em torno da dificuldade de uma prostituta, e apresenta uma gradação diante da impossibilidade da fala: “sento”, “choro”, “espio”. No entanto, o último verso causa algum desconforto na metáfora de “espiar o tempo”. “Espiar o tempo”, contudo, irá consistir em tarefa duplamente árdua para o sujeito. Espiar o tempo pode sugerir a possibilidade de não querer ver e perceber o tempo passar; ou na inversão drummondiana entre sujeito e objeto (“as casas espiam os homens”) pode indicar a imobilidade do sujeito. Nas duas situações, o movimento é de um sujeito que se furta a encarar algo de frente. A instância reflexiva aqui parece vir justamente desse movimento esquivo. Em outro sentido, expiar o tempo, com o uso da palavra homônima e homófona do verbo que está no poema, expõe consequências possíveis de serem sofridas pela própria ação do tempo, na vida: quando tudo passa ao lado, sem expressão da fala e afeto formaliza-se, portanto, uma forma de expiar o tempo, a vida.
Há, contudo, um cansaço notadamente manifestado em todo esse movimento armado entre os versos de Alvim e Drummond, que podemos ver, por exemplo, em uma seção do primeiro livro de Alvim, Sol dos cegos, publicado em 1968, sobretudo no poema “A roupa do rei” (2004:322). O extenso poema pode ser lido em seu conjunto de imagens como uma “super-metáfora” para um sujeito que, desfeito, ao fim do dia, retorna para casa. Os sinais de desgaste e cansaço já aparecem nos versos iniciais como resultados do movimento de apreensão do tempo: “Agora os corredores nos deságuam/neste grande estuário/em que os sapatos esperam/para humildemente conduzir-nos a nossas casas” (2004: 322). O advérbio indica toda uma submissão e fragilidade desse sujeito devidamente personalizado na imagem baixa e rés-do-chão dos sapatos humildemente conduzidos. Mas o retorno não é leve e nem traz alívio, apontarão as estrofes seguintes. O corpo, despido e metonimicamente desfeito em dentes e sapatos, oscila, parado em silêncio. O que teria roído a roupa do rei? E com ela toda a vontade e desejo que faltam no poema e transformam a penúltima estrofe em uma cena tão precária (“um ser nu a vida pouca/Só dentes e sapatos/de volta para casa”)? Como na fábula infantil, que leva o mesmo título do poema, “o rei está nu” e exposto e vulnerável, pois toda a majestade está sujeita a ser enganada, ludibriada ou humilhada em alguma medida. Não há orgulho, vaidade, poder, pompa ou circunstância que não possam ser desfeitos, em algum momento, exatamente quando o sujeito, reduzido a sua nudez, volta para casa.
Vê-se, então, todo um procedimento de corrosão da escrita e do tempo que é, por sua vez, o procedimento drummondiano: “a fuga da fuga, o exílio/sem água e palavra, a perda/voluntária de amor e memória [...] vida a que aspiramos como paz no cansaço (não a morte)” são versos de “Vida menor”, mais um poema de A rosa do povo (2012: 360). É esse gesto que permite ao poeta apontar para o seu tempo e nele identificar toda forma de desgaste, de desfazimento e cansaço que chegam, muitas vezes, a uma desesperança não realizada por completo. Aquele tom nomeado “pessimista” por Drummond, na entrevista de 1981, ao mesmo tempo que aponta para o movimento esquivo e pulverizador da escrita define sua realização.
Nos últimos versos do poema de Alvim, “A roupa do rei”, há uma queda completa e sem retorno – “descansemos”, diz, enfim, o verso final. A queda semântica e sintática do verso (reduzido a uma palavra) inicia exatamente quando o pronome “nós” retorna ao poema e é incluído no oximoro do convite: “em silêncio conversemos” (2004: 322).
O fazer “ao modo de” Drummond, que tampouco apresenta referência direta aos olhos do leitor no procedimento incorporado à escrita, faz emergir um tom familiar identificado também na seção do livro intitulada “Drummondiana”[1]. E, talvez assim, possamos então conectar aquela “conversa silenciosa” com um “fechar de olhos para ver bem”, que, no doloroso “Outubro 1930” (2012: 139), de Alguma poesia, é sugerido como estratégia para ver o amor tornado impossível diante da guerra. Não há dúvidas de que ambos os sujeitos estão diante do paradoxo do instante.
Conforme esse arquivo de poemas e versos se arma entre o poeta moderno e o outro por essa tradição orientado, gradativamente percebemos que a ambivalência da escrita é a própria ambivalência diante do tempo presente. Em uma entrevista concedida a Lya Cavalcanti, em 1954, na rádio do Ministério da Educação e Cultura, Drummond comenta sobre certo anacronismo que define a natureza literária. Enfatizava Drummond:
“O que há de mais importante na literatura, sabe? É a aproximação, a comunhão que ela estabelece entre seres humanos, mesmo à distância, mesmo entre mortos e vivos. O tempo não conta para isso. Somos contemporâneos de Shakespeare e de Virgílio. Somos amigos pessoais deles. Se alguém perto de mim falar mal de Verlaine, eu o defendo imediatamente; todas as misérias de sua vida são resgatadas pela música de seus versos.” (2008, p. 52)
Como quem atesta o pertencimento ao seu tempo e a todos os tempos, numa espécie de suplemento às afirmações de Drummond, é fundamental que lembremos das palavras de Murilo Mendes, em texto de 1970:
“Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito. Atraem-me a variedade das coisas, a migração das ideias, o giro das imagens, a pluralidade de sentidos de qualquer fato, a diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da história. Sou contemporâneo e partícipe dos tempos rudimentares da matéria – desde 900 bilhões de anos? –, do dilúvio, do primeiro monólogo e do primeiro diálogo do homem, do meu nascimento, das minhas sucessivas heresias, da minha morte e mínima ressurreição em Deus ou na faixa da natureza, sob uma qualquer forma; do último acontecimento mundial ou do acontecimento anônimo da minha rua. [...] Excitante, a minha fraqueza: alimenta-se dum foco de energia em contínua expansão.” (1994: 46)
E aqui está, mais uma vez, a consciência de uma força atemporal capaz de mover o poeta – força essa muitas vezes alimentada pela negatividade das coisas do mundo. Na verdade, essa força desdobra-se em duas instâncias: um lugar de vida vislumbrado nas imagens de equilíbrio, serenidade, e muitas vezes um lugar de morte, ou de uma força destrutiva que move o mundo, associada ao “universo em crise”, ao “massacre”, à “luta e negação”, ao “sangue espremido”, ao inferno configurado no poema nos geradores de guerra, se lembrarmos – para citar apenas um exemplo de um importante poema de Murilo Mendes – “O poeta futuro”, de As metamorfoses (1994). No poema de Murilo, apesar do que o título possa sugerir, não há qualquer expectativa em torno de um “porvir”, pois “o poeta futuro já vive no meio de vós”. Além disso, apresenta o poeta como um ser qualquer, capaz de (e no dever de) sujar-se nos acontecimentos do mundo, para além da banalidade das coisas de agora, “Surgiu do universo em crise, do massacre entre irmãos.” (1994: 319)
A sensação de desajuste muitas vezes se impõe à de pertencimento ao seu próprio tempo, e a impotência diante do impasse converte a experiência poética em resistência. Ela resiste àquilo que não consegue apreender, à falta e excesso refletidos na sociedade e na história. A linguagem da poesia é sempre atravessada pelas coisas que existem na mesma medida em que as atravessa. Tanto na escrita de Francisco Alvim quanto na de Drummond, as consequências desse atravessamento são expostas e grafadas no próprio tempo e no corpo – da escrita (enquanto gesto), do poema e dos sujeitos. Tudo se configura de modo muito vulnerável, sem que haja proteção capaz de impedir o permanente desamparo desses sujeitos sempre submetidos a alguma instância inelutável (social, histórica, temporal, política, afetiva): “um ser nu a vida pouca/Só dentes e sapatos/de volta para casa”, em Alvim (2004: 322), “Meu coitado corpo/ tão desamparado/entre nuvens, ventos,/neste aéreo living!”, em Drummond (2012: 268); ou então sujeitos sempre desdobrados em outros, no característico procedimento drummondiano de amplificar a voz poética pelo deslocamento pronominal: “Hoje quedamos sós. Em toda parte,/ somos muitos e sós. Eu, como os outros.”, em “Mas viveremos”, de Drummond (2012: 480).
Convém salientar então que, ao invés de paralisarem, todos esses impasses e inadequações ampliam as possibilidades da escrita e da sensibilidade poética. Uma avaliação determinante desse percurso pode ser feita em “Edifício esplendor” (2012: 268). A presença dos ratos no edifício do poema evidencia a força de ação do tempo, inexato e móvel como o corpo e a consciência da escrita. Até então organizado em estrofes que descrevem, em terceira pessoa, diferentes cenas entre presente e passado, assinalando a passagem do tempo, a orientação de voz e métrica é completamente desfeita com a chegada dos ratos. Eles são uma voz de fora a lamentar a passagem do tempo presentificada na deterioração do prédio, de seus objetos e pessoas. E quando o poema termina, são eles, os ratos, que corroem tempo e escrita: “– Que século, meu Deus! Diziam os ratos./E começavam a roer o edifício”. (2012: 268)
O permanente movimento de resistência que aparece nessa poesia – notemos que os ratos começam a roer o edifício, ainda em pé, somente quando o poema termina – nos levaria, ainda, a um poema de João Cabral de Melo Neto, “A Carlos Drummond de Andrade”, publicado em O engenheiro, livro de 1945 – mesmo ano de publicação de A rosa do povo, de Drummond. Apesar das interpelações feitas pelo poeta a “Carlos”, em “Difícil ser funcionário”, poema escrito em 1943 e que não está em O engenheiro, uma resposta agora dada a Drummond (e, por que não, à própria poesia de Cabral) parece devolvida em “A Carlos Drummond de Andrade”. O poema atesta e adverte para a necessidade de enfrentamento, quando a linguagem se apresenta como instrumento de luta e de desamparo: não há guarda-chuva contra o poema, o amor, o tédio, o mundo, o tempo. Frente ao tédio da periodicidade, da exatidão e da tentativa de precisão temporal (as quatro paredes, os quatro pontos cardeais, as quatro estações), o poeta responde com a intensidade de todos esses elementos no poema, consciente de sua vulnerabilidade, e também de sua força.
Referências:
ALVIM, F. (2011). O metro nenhum. São Paulo, Companhia das Letras.
_____. (2004). Poemas [1968-2000]. [Coleção Às de colete, v.8]. São Paulo; Rio de Janeiro, Cosac Naify; 7 Letras.
ANDRADE, C. D. 2012. Carlos Drummond de Andrade: poesia 1930-62: de Alguma poesia a Lição de coisas. Org. Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, Cosac Naify.
____. (2011). Jornal Hoje. [Rede Globo de televisão]. 25 jul. 1981. Entrevista concedida à Leda Nagle. Disponível em: [Parte 1] e [Parte 2]. Acesso em: 29 out. 2011.
____. (2008). Tempo vida poesia. Rio de Janeiro: Record, 2008.
MELO NETO, J. C. (2008). Poesia completa e prosa. Org. Antonio Carlos Secchin. 2ª ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar.
MENDES, M. (1994). Poesia completa e prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro, Nova Aguilar.
[1] A seção cujo título é “Drummondiana” aparece seguida de dois-pontos como que anunciando o poema – ou os poemas – que viria a seguir, na edição original de Sol dos cegos (1968), publicação independente. Na edição de Passatempo e outros poemas (1981), da Brasiliense, o título permanece, dessa vez sem os dois-pontos. Já na coletânea das editoras Cosac Naify/7 Letras, publicada em 2004, o subtítulo “Drummondiana” vira então epígrafe para o poema “A roupa do rei”.