SAYONARA PINHEIRO, ARTISTA VISUAL POTIGUAR.
FOTO: GUARACI GABRIEL / AGÊNCIA FOTEC
farfalho
vai víspora
abocanha com sua insólita sordidez
a beleza das dunas que se espalham como um tilintar de pólvora
desses rochedos por onde o povo se ralha
vai verme
rasga os intestinos da nação
e faz das suas veias
uma porção hermética do mal
talha do vento que vem e finda
vai pandemônio
estende no varal das loucas ruas seu troféu
estigma do céu da língua desse sadismo fascista
esticando como um estilete em maresia
o pulso do enorme humilde sonhador anônimo
vai praga
rouba você os seus instintos
para nunca mais fechar seus olhos
cadáver dos milhões dos pensamentos seus
feixe de contêineres pulga do pó
por sobre seus pés que não aterrissam.
trêmulus
aos
que de mim
servem-se
do feno que vagueia pela aldeia sem hora
nua e sem ilhas
como sopro fustigado
que abanas
e sujeito a práticas sem olhos
tão estranho ordeiro
detentor de uma vida sem pés
como refratário
adormecido de lustres, úberes e lupas
pêndulo cão de perdidos sem braços
vela do barco sem proa
tão frio cais
entre o inteiro e o que não serve mais.
subterrânea
mina subterrânea e lúgubre
imerso de fagulhas, suítes de suores
e o sádico que de mim faz-se louco
rou como selvagem pedra
como um fogo desse tempo
suicida e letal
como o abismo que os meus pés espalha
como esse cânhamo da manhã que fabrico
raiz cubículo empalhe tecido
tudo tão roto rasgos ridículos
mofo mulambo asco
noite que vem
eu dentro dessa febre do nada.
húmus
pega teu casaco e adormece como um feno fétido e
ferido
faz dos teus ombros as dobras das sombras das sobras dos teus falidos
sorrisos e silêncios
garimpa teu céu sem ser seu lar recolhe como um
proscrito as abas de um lume sem luar
sem vestígios de um hecatombe terminal
amealhando animais senis parecidos com seus sobrinhos e hastes
suja tua raiz
tuas dobras milenares e tudo que rosna
procura viver de pedaços: de um leito da amante fugidia
do pão mofado e extinto
restaura e replica o condão do seu quintal sem a fútil lembrança de um pássaro passado
espelho sem moldura
e como um ágil senil
abre tuas balsas
e diz para os outros que não tem como fugir de tanta fome
da existência e da torre por onde seus olhos findaram
como morcego cego e sem o múltiplo de tudo vai e some.
espátula
ficaste parado no tempo
como um vento que corrói e retrai
longe
muito longe fostes
mas hoje cruel e foragido
rasga como um senil
o azulejo que te viu crescer
foge agora
procura por teus passos ao largo da montanha
por teus fósseis ossos
por teus ornados vazios
lambe como uma centopeia mofada
a morada das tuas costas
império de tantas palavras paridas
como a crosta dos teus cubículos, esconderijos, reentrâncias
vens de uma manada sem leito
pouca fisionomia como teu defeito
face de um mesmo receptáculo estreito
provoca tua dor
cavalga prepara teu capim
dorme entre fezes e frestas
e como um espadachim
rasga a folha da lua que te viu nascer.
CARLOS GURGEL / FOTO: GIOVANNA HACKRADT RÊGO
Carlos Gurgel é dos nomes fundamentais da cena cultural potiguar contemporânea. Multiartista, a poesia é seu porto inseguro, sua zona movediça de onde se lança a experiências interartísticas inusitadas. Sua obra conta com livros, como Apaixonada poesia louca, discos, como "Labaredasesconderijo", e objetos multimídias, como "Dramática gramática", mescla de livro e camiseta e poster e CD e DVD. A colaboração com artistas de campos diversos é um índice do caráter comunitário de um olhar criador, sua prática abertamente democrática da ideia de arte. Os poemas que Sphera aqui estampa fazem parte do inédito Féretro da febre do fim, livro em vias de publicação.
Comments